quinta-feira, 25 de setembro de 2014

ele me bebeu ou como apagar os traços de alguém

-Hummmm, veio hoje de candoca?
-Como assim?
-Candoca é quando uma mulher jovem decide se vestir de velha pra impor mais respeito.
-E como eu deveria estar pra ti, Diorzinho?


Mindy Kaling, candoca


Há umas três semanas ouvi essa de um colega de trabalho. Eu usava no momento um vestido de manga longa, preto, com meia calça. Ou seja: eu estava como na maioria das minhas aparições públicas, de vestido. Fiquei pensando no mundo desse colega: mulheres ~jovens~ não se vestem como eu; mulheres ~velhas~ se vestem como eu. Depois de mandar ele à merda na minha cabeça e atender uma fila de pais e mães dos alunos que tinham ficado em recuperação e que, sabe-se lá o que decidiram julgar acerca de como eu estava vestida,

tatuagem grande no braço, piercing no nariz, e esse vestido, esse vestido de candoca, transparente logo nesse braço,  não deve ter corrigido as provas direito com esse vestido.

Segui pensando em uma possível necessidade recorrente que as pessoas têm de tecer ~elogios~ uns para os outros no trabalho. Sim, incrivelmente o caso da candoca deslizava na fronteira entre elogio e crítica.

Parabéns, hoje tu estás digna para atender os pais, pois mulheres mais velhas são mais sabidas e melhores professoras de Português que as mais novas, que tem cara de que não conseguem proteger a Língua Portuguesa... são as mesmas que querem queimar a gramática de certo... mas hoje não, hoje tu vai proteger a língua, porque se fantasiou adequadamente.



Virginia, aquela candoqueira de praia


Obviamente meu colega presta atenção nas pessoas lá do jeito dele, com as categorias de mundo pras quais ele parece ter nascido e evita desnascer. Além de nunca ter notado que uso vestidos o tempo todo (porque calças jeans não foram feitas pra pessoas com pouco quadril e gordura localizada como eu; ou pra pessoas com muito quadril ou pra pessoas) e de ter deixado claro suas categorias pra alguém que jamais as quis conhecer, ele se sentiu livre o suficiente pra falar da minha aparência. E pra falar de juventude e envelhecimento. E pra sair caminhando faceiro, como uma pessoa bacana, que é simpático e conversa com todo mundo. Disso decorre uma série de tópicos que parecem elogios nas conversas entre colegas, mas que a gente pode problematizar do ponto de vista dos discursos implicados neles.

Menina, nossa, como tu emagreceu!
Esse eu escuto de tempos em tempos. E, em geral, a pessoa referida como magra não responde e daí?, lavar loucinha, ahn ahn? mas obrigada sempre rola, um sorriso enorme e muitas conversas subsequentes sobre dietas mil, pilates, treino, jump, pump, vamp, dance, blurp, sementes secas que um passarinho do norte defecou em alguma terra sem glúten. O mais estranho é que já notei que às vezes a pessoa não emagreceu, mas alguém decide que ela está meio triste ou deprê e solta essa, que é pra ver se anima, se melhora a autoestima, porque claro, ser magro é melhor que ser gordo néééaaaann.




Que lindo tá o teu cabelo! Fez progressiva?
Teu cabelo está lindo por fazer progressiva? É isso mesmo que tu precisa dizer pra alguém que fez progressiva? Eu raramente escuto alguém dizer que lindo teus dreads; bacana tu ter passado a zero, amiga; esse teu cacho é tão enrolado que depois que eu entro nele eu não consigo sair mais, teus cachos me dominam, vou fazer um permanente; inveja do teu afro exuberante...




Tu é tão bonita, podia te maquiar mais, assim, tirar esse moleton...
Dizer que a pessoa é tão bonita que se ela se arrumasse melhor ela seria tão melhor que ela mesma - chega a ficar confuso. Esse é duro e é de matar.




Que chique que tu tá hoje, hummm, comprou onde, na Zarannn?
Cito a Zara porque nem sei o que é que é chique, pra ser sincera. E por tudo o que significa comprar num lugar como esse – o que isso te faz significar no mundo, em muitos desdobramentos. Mas esse elogio, confesso, me causa ânsia de vômito. É tão triste por medir o salário da criatura pela etiqueta, que chega a ser clichê eu estar escrevendo isso. Mas vai além disso – é a redução mais substantiva da pessoa, que já tá atolada pela Zara, ao nada do convívio.

E o que sobra?

Prestar a atenção nesses pequenos grandes detalhes parece uma forma de nunca relaxar, nem nos momentos aparentemente mais simples e tranquilos de estar com outras pessoas. Mas quem mesmo acredita que o discurso relaxa? Alguém aí? Palavra que descansa é palavra perigosa.
É fácil e confortável reduzir o contato com alguém à coisa nenhuma - mais fácil ainda com uma mulher. Porque, pra não ficar em silêncio, eu saio assim, dizendo esse monte de banalidade.

O que mais tem no mundo é gente besta e pau seco. Manoel de Barros

E por que é melhor ser besta ou pau seco se a gente pode brotar muito mais, conhecer as pessoas de verdade, silenciar meus pensamentos sobre seus cablos, olhos, bolsas?
Rarissimamente alguém no meu trabalho elogiou ou quis debater algum projeto que desenvolvi; algum artigo acadêmico que escrevi; algum livro que tenho lido; algum filme romeno que me desestabilizou e que meus olhos abobados não param de falar sobre. Mas eu digo querer saber de verdade, querer realmente desconfortar a conversa, ir mais fundo e violentar o que pode ser tratado por estereótipos e metaforinhas pré-fabricadas antes de eu nascer.
Não se trata aqui da inocência pobre miserável de dizer que é mais importante o que as pessoas tem por dentro, porque esse papo de essência e aparência o Nietzsche já deu conta faz tempo. Se trata de reconfigurar as imagens que criamos. Somos nossas imagens e elas tem nuances. Se trata de perguntar que visualidades procuro criar com aquelas que convivem comigo?

Sou professora e dou aula pra crianças extremamente fofas e lindas em toda a magnífica fofura que pode haver nos dentes caídos, nas coisas cor de rosa que usam, nas bochechas infladas de vida. Mas é sobre isso que se fala com uma menina ou um menino? É isso que ressaltamos ao falar com uma criança? Tenho uma alma afetiva e sei como é duro esse monitoramento, porque fui educada para ser assim, mas tento desnascer nessa educação. Até porque, não é deixar de ser afetivo com os outros, ou parar de ressaltar aquilo que vemos de mais bonito nas pessoas, mas é evitar o caminho mais fácil e programado de entender “afeto” e “beleza”.

Esse texto da Lisa Bloom é tão bonito sobre isso:


Eu me esforço para falar com as meninas assim:
“Maya,” eu disse, me ajoelhando até ficar da sua altura, olhando em seus olhos, “prazer em conhecê-la”.
“O prazer é todo meu,” ela disse, com a voz já bem treinada e educada para falar com adultos como uma boa menina.
“Hey, o que você está lendo?” Perguntei, com um brilho nos olhos. Eu amo livros. Sou louca por eles. Eu deixo isso transparecer.
Seus olhos ficaram maiores, e ela demonstrou uma empolgação genuína, mas contida, sobre o assunto. Ela pausou, no entanto, tímida por estar com um adulto desconhecido.
“Eu AMO livros,” eu disse. “E você?”
A maioria das crianças gosta de livros.
“SIM,” ela disse. “E agora eu consigo ler sozinha!”
“Que incrível!” eu disse. E é incrível, para uma menina de 5 anos.
“Qual é o seu livro preferido?” perguntei.
“Vou lá pegar! Posso ler pra você?”


Isso tudo me faz pensar um conto da Clarice, que faz parte do livro “Via Crucis do Corpo”. No conto, “Ele me bebeu”, a personagem Aurélia tem seu rosto apagado por um maquilador, o Serjoca. Eles tinham uma relação bastante profunda de amizade. Serjoca maquia Aurélia para que ela fique bonita para encontrar um homem:

Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto. A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena. Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar no espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos –e tinha uma ossatura espetacular – mesmo os ossos tinham desaparecido.


Já tava quase esquecendo, Clarice, essa candoca do meu coração


By Raquel Leão


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