quinta-feira, 16 de outubro de 2014

epifania feminista

Ando coletando histórias (de terror) que me sufocam de tanto machismo. Não são apenas histórias de estupro e violência física, de machismo visível e de fácil identificação. Mas histórias de ruído machista.

A mulher faz uma cirurgia. Está em casa se recuperando, com bastante dor no corpo, tomando remédio, com cicatrizes, marcas, incômodos, precisando de carinho, mimo, atenção. O seu namorado diz que só espera duas semanas, depois disso vai começar a “procurar sexo na rua”.

A mulher está doente, sem condições, sem vontade. Não importa, essa é uma de suas funções. Não pode deixar o namorado insatisfeito, aguenta a dor e abre as pernas.

A mulher engravida. O casal não quer ter filho. O namorado a deixa de lado e avisa as amigas que “isso é com elas”. As amigas pagam o aborto (ilegal e perigoso, infelizmente ainda no Brasil) e cuidam dela. O namorado segue falando que não vai usar camisinha.

Engravidar é culpa da mulher. Quem cuida disso é ela e suas amigas, também mulheres, também culpadas.

Para esses homens, no sexo tudo que importa é o seu próprio prazer. A mulher está ali servindo como um objeto de prazer, uma boneca inflável. 



O que quero tratar nessas histórias não é o machismo masculino. Esses caras são tão escrotos que nem merecem um texto sobre eles.  O que me convoca a escrever são as atitudes femininas. As duas mulheres dessas histórias continuam nesses relacionamentos, estão, no momento, ocupadas organizando seus casamentos. 

Também não estou aqui apontando o dedo para essas mulheres e as chamando de culpadas. Elas são vítimas de uma sociedade machista que diz para elas todos os dias que elas não são nada, que sem os homens elas são coitadas solteironas, que elas não podem ser independentes, que elas são feias e gordas e precisam da aprovação masculina, que elas possuem um papel já bem definido e não podem ser questionadoras.

Expondo essas duas pequenas histórias dessa forma, fica mais fácil identificar a violência contra a mulher. Mas essas são violências veladas, escondidas, tão cotidianas que esquecemos o quanto elas violam os direitos das mulheres. Essas mulheres que estão presas em relacionamentos tóxicos acabam não enxergando isso de tão corriqueiro que é, de tão presente em piadas, de tão impregnado em nossos hábitos.

Escrevo num grito de desespero, porque conheço essas mulheres e muitas outras iguais e queria conseguir mostrar para elas a violência que elas vivem todos os dias. Não é fácil enxergar. E se enxergar, não é fácil se livrar. Elas pensam que precisam fazer esses relacionamentos funcionarem para não serem fracassadas. Elas pensam que não vão encontrar ninguém melhor. Pensam que esses homens têm, sim, poder sobre seus corpos, suas vontades, suas necessidades.



Clarice Lispector colocou muitas de suas mulheres personagens em situações de confronto, em momentos epifânicos que podiam ser provocados pelas coisas mais cotidianas e sem sentido e que exigiam questionamento sobre a vida tranquila e normativa que elas aparentemente levavam. Para Ana, do conto “Amor”, foi ver um cego mascando chiclete no bonde.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

 A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

 O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles… Um homem cego mascava chicles.

 Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
(...)
 O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo… E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

 Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
(...)
 Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
(...)
 Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.


Pequenas atitudes feministas podem ser o cego mascando chiclete. Ser mulher é uma luta todos os dias. Ser mulher é transgredir, revolucionar. Falar mais sobre feminismo, não deixar passar nenhuma piada, nenhum comentário machista é uma luta da mulher. A piadinha do teu colega de trabalho pode representar a violência silenciosa que a mulher dele passa todos os dias.

Nesse grito de socorro, eu peço: não se calem, não tenham medo, lutem contra qualquer forma de machismo. Em algum momento, essas mulheres dessas histórias terão de se deparar com um cego mascando chiclete, com uma epifania feminista. Vão ter que comer o mundo com os dentes e encher o coração da pior e mais doída vontade de viver.


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