sábado, 6 de dezembro de 2014

como ser uma parisiense em qualquer lugar do mundo

Não quis acreditar quando me dei conta de que sim, uma mulher, brasileira, pode desejar comprar essa ideia, "Como ser uma parisiense em qualquer lugar do mundo", título do livro que a tal Caroline de Maigret, musa da Chanel e da Lancôme, lançou pela Objetiva no início de novembro no Brasil. 

E aí a Caroline de Maigret. Que belo exemplar da mulher parisiense! Vejam todos! Ela é um pouco despreocupada com seus cabelos. Muito magra, mantém uma dieta low carb - assim como você aí, nesse sofá, deveria fazer. Um estilo casual, assimétrico, que custa bem caro, não se engane. 

Fiquei pensando: será mesmo? Que verdade é essa que sustenta a vontade de ser uma parisiense em qualquer lugar do mundo? De que parisiense se está falando? O que faz, desse livro, um discurso possível de circular socialmente, onde eu e tu, brasileiras, filhas de uma suposta mestiçagem - uma mestiçagem disfarçada; filhas do abandono, da usurpação e do repúdio de uma condição negra ou indígena, do apuramento da "raça", do branqueamento histórico e colonizador de uma cultura - buscar tornar-se "parisiense", aqui, em Porto Alegre, São Paulo, Manaus, Canoas ou Viamão?

A Lu Limas, leitora do blog e amiga querida, encontrou pérolas nesse livro que ultrapassam o que eu poderia considerar apenas como machista, porque atingem justamente uma visão colonialista sobre ser mulher (que é, por certo, um dos elementos que põe em existência o machismo). Conforme a Lu nos mandou:

nada mais é que um livro dizendo que mulheres, por exemplo, tem que estar SEMPRE prontas pra transar, que as francesas nunca contratam babás mais bonitas que elas e que, mesmo que você saiba abrir um vinho, igualdade de sexos tem a ver com deixar o seu homem se sentir responsável por isso.

A violência começa pelo título, em que se pressupõe a existência de uma parisiense. Todo mundo sabe que não existe apenas uma parisiense. E todo mundo sabe, também, que existe apenas uma parisiense correta. É essa a que se deve ser. Junto disso, travestido do discurso da diversidade e da revelação das facetas errôneas dessa parisiense, que também é uma mulher de verdade, que tem dramas como todas nós, o título ainda carrega a ideia de que parisiense é mais que um fato político e geográfico e, por isso, a gente aqui pode passar na Cultura e investir R$39,90 pra fazer ser parisiense. Só que nunca. 

Graças a falta de crítica de muitas de nós ou ao excesso de consumo daquilo que nos distancia cada vez mais do que nos torna únicas (taí um motivo pelo qual viver - descobrir como construir isso, de si para si, e de mãos dadas com outras), a indústria deita e rola nos estereótipos estabilizados desde a Jane Birkin até as mulheres-blasé do Truffaut, musas divônicas de um universo artificializado. E deita e rola porque pode, há séculos, seguir com o doce massacre dos paradigmas que nos cercam. 

A Brigitte, uma mulher assim, meio em dúvida

Vemos por aí muitas mulheres buscando esse ideal, ignorando as altas temperaturas, vestindo cardigans no verão tropical, porque europeias não sentem calor; adotando uma estética que se destaca no meio do povo pela sua leveza, brancura, limpeza; ou mesmo forjando certo desleixo, amparado por alto investimento financeiro e recomendado pelos críticos de moda.

Não é só da mulher parisiense que se quer tirar o caldo pra imprimir um valor intrínseco a ser adquirido. Aí, nesse título, a gente pode substituir por qualquer outra nacionalidade (desde que atenda ao padrão de beleza da indústria dos padrões de beleza) brincar aqui e ali com estereótipos cansados, pra ser mais engraçadinho... porque é apenas uma coisa que se precisa manter, nesse título: a ideia de que alguém tem que dizer pra mulher de classe média do país subnutrido de educação, como é (certo) ser mulher. No caso desse livro, como se faz pra ser "sexy", "sofisticada", manter uma pitada de "arrogância" e ser muito, muito "elegante" e "sedutora" na cama. E mais uma centena de ideias conhecidas sobre essa mulher inventada para ser francesa.

E tem a Jane Birkin, que nem francesa era, mas ficou fácil de absorvê-la

A Lillian Pace, uma dessas "jornalistas" críticas de moda que aparece no GNT pra dizer do que só se fala no mundo da moda dá até uma dica suuuuuuper cheia de leveza e iluminação pra ler esses modos de levar a vida...


Além de tudo, as dicas reunidas pra dar esse "gostinho" ma-ra-vi-lho-so de tentar ser uma europeia inventada e invisível, vivendo uma vida alienígena e brancocêntrica, aqui, dão um gostinho de chorumito delicioso pra gente. Vê só!

O que não entra no armário de uma parisiense? A lista é grande: passa por salto baixo, logotipo, moletom, botas Ugg, blusas que mostram o umbigo e bolsas de marca falsificadas, que ganham uma explicação especial. "É que nem implante de silicone. Não é assim que se supera um complexo"

Uma peça nobre pro armário: "Não é preciso investir 10 anos de salário no guarda-roupa, ou usar roupa de marca o ano todo. Não. Basta uma única peça: aquela que a gente usa quando precisa se sentir forte (...). Uma peça cara, bem conservada, mas sobretudo imponente. Combine com calças jeans, sapatilhas ou com uma jaqueta cargo. É essencial que o resto do look seja simples"

Acho que a gente só pode fazer uma coisa a respeito dessas dicas: rir. E claro, jogar fora essas sapatilhas velhas e sofridas pra comprar pelo menos uma peça cara pro guarda-roupa. Néan? Afinal, que mulher é essa que não anda de salto e que tem acessórios falsificados, gente??? Um absurdo! Talvez seja aquela que esse livro ajudou a criar: uma mulher frustrada que não se reconhece como potente e única nesse mundo achatado de "trends" do ano. 

Sobre tudo isso, semana passada li uma entrevista essencial, do Eduardo Viveiros de Castro e da Deborah Danowski. No meu mundo eles são mais tendência, mais cool e mais importantes. Eles me fazem pensar sobre respeito e sobre saber ser muito mais índio. A entrevista não tem nada a ver com moda. Aliás, é sobre meio ambiente e política. E, incrivelmente, tem tudo a ver com esse assunto. Recomendo muito, vocês podem ler aqui. Só posso, portanto, terminar citando duas frases do Eduardo Viveiros, belíssimas para pensarmos na força de ser mulher, única, brasileira, índia e ampla. 

"Restituir o valor é restituir a capacidade de diferir, de ser diferente, sem ser desigual; é não confundir nunca diferença e desigualdade."

"Respeitar quer dizer: aceite que nem todo mundo quer viver como você vive"


Um comentário:

  1. Uau!!!! Arrasou Raquel!! Esse livro já tinha me irritado só de ler o título!!!

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