segunda-feira, 29 de setembro de 2014

subversiva: Joe, ninfo incapaz de amar

Por que Ninfomaníaca, Lars Von Trier pode ser tão desagradável pra muita gente?




Joe e as estocadas
É essa sua primeira experiência sexual com um homem. Joe começa a se construir pela falta, pela ausência de prazer. Pela brutalidade e pelo vazio do corpo. Quem em nossa cultura está acostumado com a visão de uma mulher que não grita, não uiva de prazer, graças ao incrível e poderoso falo? Joe interrompe o grito pelo silêncio.

Joe dá pra quem quiser
É ela quem decide para quem e quando. E pelos inúmeros pênis com os quais opera sua jornada sexual dia após dia, Joe mantem-se implacável e intocada – ninguém jamais conseguiu penetrar Joe.



Joe mente
Em cenas carregadas de ironia, Joe mente para cada um dos homens o quanto eles a haviam satisfeito e apresentado a ela o prazer supremo. Joe joga na cara o mal-estar social da mulher que finge orgasmo.



Joe é incapaz de amar
Eliane Brum escreveu pro El país, Joe se deixa penetrar justamente para mostrar que não pode ser penetrada, preenchida. Sua existência estilhaça, para homens e mulheres, a ausência inúmeras vezes experimentada em relações completamente vazias com o corpo, com o sexo, com o outro e consigo.




Uma mulher urina em Joe
Ela precisa ser humilhada por todos, afinal, como pode uma mulher ser tão insensível ao amor de um homem, a um filho, ao sexo? Só mesmo uma outra mulher pode colocar Joe no seu lugar - no chão.

Joe pode decidir sobre seu corpo
Ela atira no homem que pensou poder tomá-la de vez. Mesmo suja, humilhada, mulher que dá pra qualquer um, o poder de escolha ainda é dela. Joe atira no olho de quem pensou que ninfomaníaca fosse um filme erótico e excitante. Sua suposta vulnerabilidade criada por meio das confissões produz o julgamento assassino do espectador, que pensou saber tudo sobre ela, que pensou dominá-la. 




Joe é subversiva. Toda mulher é um pouco Joe.  


by Raquel Leão

domingo, 28 de setembro de 2014

agora tudo é machismo

Sigo no facebook a página chamada “Quebrando o tabu” e me deparei com a seguinte notícia: Cosmonauta russa pioneira rebate pergunta 'machista' sobre penteado.
A mulher teve a inteligência de rebater rápido e com muita simplicidade e elegância a pergunta estúpida de um dos jornalistas, que achou que o mais apropriado para perguntar para uma astronauta que se preparou por oito anos para uma missão espacial que vai durar 6 meses era como ela ia manter o penteado no espaço. Sério?
A querida Yelena Serova perguntou de volta: Você não tem interesse no penteado dos meus colegas? Rá!

Até aí foi um momento lindo em que uma mulher rebateu um comentário machista. “Vencemos!”, pensei eu ingenuamente. O problema como sempre é ler os comentários desses páginas...


A galera tá lá seguindo uma página de protesto, que (atenção!!) se chama “Quebrando o tabu” e conseguem não entender do que se trata. Vão lá e vomitam merda:


A primeira pessoinha coitada concordou com a posição da página que chamava atenção para o quanto a pergunta foi machista. Os outros amores resolveram defender aquele ponto tão fácil que é dizer que “Agora tudo é machismo”, “Ah, não podemos dizer mais nada”, “Feministas mimimi”, e mais frases vazias e estúpidas. 


Usarei toda a minha paciência e vontade de mudar o mundo para analisar cada uma das coisas queridas escritas acima:

Oq? Perguntar como mantém o cabelo penteado é machismo? ... adeus Internet – sim, queridooo, é machismo! Ele fez a mesma pergunta para os homens? Não! Por que necessariamente tem a ver com uma mulher a preocupação com o penteado? Presumir que uma mulher se preocupa com isso acima de outras coisas apenas por ser mulher é machismo sim! E não dá adeus pra internet, não, de repente tu ainda aprende alguma coisa nessas páginas legais.

O cara perguntou uma coisa comum entre as mulheres: O corte de cabelo, cade o machismo? – Uma coisa comum entre as mulheres? Presumir que isso é algo comum entre as mulheres é o machismo, amado! Tem mulher que não se preocupa assim tanto com o cabelo e muuuuitos homens que se preocupam muito mais e essa ainda é uma análise bem rasinha da situação.

Não demora um “você está linda” se tornar frase machista – sabia que um “você está linda” pode ser bem machista, sim? O machismo está nessa liberdade que as pessoas sentem em falar que uma mulher é linda ou não, como se fosse pra isso que ela servisse. Como dizem as lindas do “Lugar de mulher”: “não sou teus bibelô”.

Que exagero! – Yelena não estava em uma entrevista para falar do seu cabelo, mas, assim como seus colegas de profissão homens, pra falar sobre a sua missão espacial. O fato de ter surgido na cabecinha de um jornalista que era apropriado perguntar sobre o cabelo dela num momento em que isso não interessava de forma nenhuma NÃO É EXAGERO.



Novamente os privilegiados mostrando seu medo de perder os já tão consolidados privilégios. “Agora tudo é machismo” é uma frase tão fácil de dizer, que não tem fundamento nenhum. Agora é machismo o que sempre foi machismo, a diferença é que tem mais pessoas apontando pra isso e esfregando na carinha da sociedade machista e heteronormativa. Livrem-se das suas visões distorcidas do que é ser mulher e do que se pode falar sobre mulher. Tu não pode falar o que tu quiser, tu não pode falar sobre o corpo de uma mulher simplesmente por ela existir, tu não pode presumir que mulher é assim ou assado. Não, amado, esses privilégios que tu tem violentam as mulheres e tu precisa parar. Não é exagero. O que é machista agora sempre foi machista.



quinta-feira, 25 de setembro de 2014

ele me bebeu ou como apagar os traços de alguém

-Hummmm, veio hoje de candoca?
-Como assim?
-Candoca é quando uma mulher jovem decide se vestir de velha pra impor mais respeito.
-E como eu deveria estar pra ti, Diorzinho?


Mindy Kaling, candoca


Há umas três semanas ouvi essa de um colega de trabalho. Eu usava no momento um vestido de manga longa, preto, com meia calça. Ou seja: eu estava como na maioria das minhas aparições públicas, de vestido. Fiquei pensando no mundo desse colega: mulheres ~jovens~ não se vestem como eu; mulheres ~velhas~ se vestem como eu. Depois de mandar ele à merda na minha cabeça e atender uma fila de pais e mães dos alunos que tinham ficado em recuperação e que, sabe-se lá o que decidiram julgar acerca de como eu estava vestida,

tatuagem grande no braço, piercing no nariz, e esse vestido, esse vestido de candoca, transparente logo nesse braço,  não deve ter corrigido as provas direito com esse vestido.

Segui pensando em uma possível necessidade recorrente que as pessoas têm de tecer ~elogios~ uns para os outros no trabalho. Sim, incrivelmente o caso da candoca deslizava na fronteira entre elogio e crítica.

Parabéns, hoje tu estás digna para atender os pais, pois mulheres mais velhas são mais sabidas e melhores professoras de Português que as mais novas, que tem cara de que não conseguem proteger a Língua Portuguesa... são as mesmas que querem queimar a gramática de certo... mas hoje não, hoje tu vai proteger a língua, porque se fantasiou adequadamente.



Virginia, aquela candoqueira de praia


Obviamente meu colega presta atenção nas pessoas lá do jeito dele, com as categorias de mundo pras quais ele parece ter nascido e evita desnascer. Além de nunca ter notado que uso vestidos o tempo todo (porque calças jeans não foram feitas pra pessoas com pouco quadril e gordura localizada como eu; ou pra pessoas com muito quadril ou pra pessoas) e de ter deixado claro suas categorias pra alguém que jamais as quis conhecer, ele se sentiu livre o suficiente pra falar da minha aparência. E pra falar de juventude e envelhecimento. E pra sair caminhando faceiro, como uma pessoa bacana, que é simpático e conversa com todo mundo. Disso decorre uma série de tópicos que parecem elogios nas conversas entre colegas, mas que a gente pode problematizar do ponto de vista dos discursos implicados neles.

Menina, nossa, como tu emagreceu!
Esse eu escuto de tempos em tempos. E, em geral, a pessoa referida como magra não responde e daí?, lavar loucinha, ahn ahn? mas obrigada sempre rola, um sorriso enorme e muitas conversas subsequentes sobre dietas mil, pilates, treino, jump, pump, vamp, dance, blurp, sementes secas que um passarinho do norte defecou em alguma terra sem glúten. O mais estranho é que já notei que às vezes a pessoa não emagreceu, mas alguém decide que ela está meio triste ou deprê e solta essa, que é pra ver se anima, se melhora a autoestima, porque claro, ser magro é melhor que ser gordo néééaaaann.




Que lindo tá o teu cabelo! Fez progressiva?
Teu cabelo está lindo por fazer progressiva? É isso mesmo que tu precisa dizer pra alguém que fez progressiva? Eu raramente escuto alguém dizer que lindo teus dreads; bacana tu ter passado a zero, amiga; esse teu cacho é tão enrolado que depois que eu entro nele eu não consigo sair mais, teus cachos me dominam, vou fazer um permanente; inveja do teu afro exuberante...




Tu é tão bonita, podia te maquiar mais, assim, tirar esse moleton...
Dizer que a pessoa é tão bonita que se ela se arrumasse melhor ela seria tão melhor que ela mesma - chega a ficar confuso. Esse é duro e é de matar.




Que chique que tu tá hoje, hummm, comprou onde, na Zarannn?
Cito a Zara porque nem sei o que é que é chique, pra ser sincera. E por tudo o que significa comprar num lugar como esse – o que isso te faz significar no mundo, em muitos desdobramentos. Mas esse elogio, confesso, me causa ânsia de vômito. É tão triste por medir o salário da criatura pela etiqueta, que chega a ser clichê eu estar escrevendo isso. Mas vai além disso – é a redução mais substantiva da pessoa, que já tá atolada pela Zara, ao nada do convívio.

E o que sobra?

Prestar a atenção nesses pequenos grandes detalhes parece uma forma de nunca relaxar, nem nos momentos aparentemente mais simples e tranquilos de estar com outras pessoas. Mas quem mesmo acredita que o discurso relaxa? Alguém aí? Palavra que descansa é palavra perigosa.
É fácil e confortável reduzir o contato com alguém à coisa nenhuma - mais fácil ainda com uma mulher. Porque, pra não ficar em silêncio, eu saio assim, dizendo esse monte de banalidade.

O que mais tem no mundo é gente besta e pau seco. Manoel de Barros

E por que é melhor ser besta ou pau seco se a gente pode brotar muito mais, conhecer as pessoas de verdade, silenciar meus pensamentos sobre seus cablos, olhos, bolsas?
Rarissimamente alguém no meu trabalho elogiou ou quis debater algum projeto que desenvolvi; algum artigo acadêmico que escrevi; algum livro que tenho lido; algum filme romeno que me desestabilizou e que meus olhos abobados não param de falar sobre. Mas eu digo querer saber de verdade, querer realmente desconfortar a conversa, ir mais fundo e violentar o que pode ser tratado por estereótipos e metaforinhas pré-fabricadas antes de eu nascer.
Não se trata aqui da inocência pobre miserável de dizer que é mais importante o que as pessoas tem por dentro, porque esse papo de essência e aparência o Nietzsche já deu conta faz tempo. Se trata de reconfigurar as imagens que criamos. Somos nossas imagens e elas tem nuances. Se trata de perguntar que visualidades procuro criar com aquelas que convivem comigo?

Sou professora e dou aula pra crianças extremamente fofas e lindas em toda a magnífica fofura que pode haver nos dentes caídos, nas coisas cor de rosa que usam, nas bochechas infladas de vida. Mas é sobre isso que se fala com uma menina ou um menino? É isso que ressaltamos ao falar com uma criança? Tenho uma alma afetiva e sei como é duro esse monitoramento, porque fui educada para ser assim, mas tento desnascer nessa educação. Até porque, não é deixar de ser afetivo com os outros, ou parar de ressaltar aquilo que vemos de mais bonito nas pessoas, mas é evitar o caminho mais fácil e programado de entender “afeto” e “beleza”.

Esse texto da Lisa Bloom é tão bonito sobre isso:


Eu me esforço para falar com as meninas assim:
“Maya,” eu disse, me ajoelhando até ficar da sua altura, olhando em seus olhos, “prazer em conhecê-la”.
“O prazer é todo meu,” ela disse, com a voz já bem treinada e educada para falar com adultos como uma boa menina.
“Hey, o que você está lendo?” Perguntei, com um brilho nos olhos. Eu amo livros. Sou louca por eles. Eu deixo isso transparecer.
Seus olhos ficaram maiores, e ela demonstrou uma empolgação genuína, mas contida, sobre o assunto. Ela pausou, no entanto, tímida por estar com um adulto desconhecido.
“Eu AMO livros,” eu disse. “E você?”
A maioria das crianças gosta de livros.
“SIM,” ela disse. “E agora eu consigo ler sozinha!”
“Que incrível!” eu disse. E é incrível, para uma menina de 5 anos.
“Qual é o seu livro preferido?” perguntei.
“Vou lá pegar! Posso ler pra você?”


Isso tudo me faz pensar um conto da Clarice, que faz parte do livro “Via Crucis do Corpo”. No conto, “Ele me bebeu”, a personagem Aurélia tem seu rosto apagado por um maquilador, o Serjoca. Eles tinham uma relação bastante profunda de amizade. Serjoca maquia Aurélia para que ela fique bonita para encontrar um homem:

Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto. A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena. Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar no espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos –e tinha uma ossatura espetacular – mesmo os ossos tinham desaparecido.


Já tava quase esquecendo, Clarice, essa candoca do meu coração


By Raquel Leão


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

sobre Emma Watson, man hating e feminismo

Confesso que assisti ao discurso da Emma Watson procurando defeitos, querendo não gostar. Meu preconceito do avesso apitou quando vi que uma guria bem novinha, magrinha, bonitinha, riquinha e famosinha resolveu falar sobre feminismo. Mas a guriazinha bonitinha me conquistou e mostrou uma clareza surpreendente sobre o tema.

A primeira questão levantada por ela que me chamou atenção foi sobre a ideia que muitos têm formada de que feminismo é a mesma coisa que odiar homens, que as feministas gostariam que os homens morressem e que as mulheres mandassem na Terra. Ela insistentemente repete que ser feminista é querer igualdade. Para quem já tanto lê sobre o assunto, parece desnecessário falar isso, mas uma rápida busca no google me provou o contrário:


Ainda é um tabu falar de feminismo. Feministas ainda são vistas como lésbicas feias que odeiam homens. Essa visão extremamente distorcida surge do medo da perda dos privilégios. Os homens nunca viveram em condições de igualdade com as mulheres e isso assusta. Pois igualdade entre homens e mulheres é muito mais do que dividir a louça suja.

Assim entro no ponto principal do discurso da Emma Watson e que pode acabar provocando diferentes opiniões sobre o quanto isso é necessário, ou válido dentro do feminismo. Emma chamou os homens para a luta feminista. Uma parte do seu discurso foi recheada de exemplos de situações em que homens também são prejudicados pelo machismo. Afinal, enquanto a mulher deve ser submissa, o homem deve ser agressivo, impor respeito, insensível. Quando ouvi Emma falando disso, pensei imediatamente no que sempre digo quando alguém me fala que o machismo é ruim tanto para homens quanto para mulheres: a mulher ainda assim é muito mais prejudicada e violentada. O sofrimento do homem não leva ao estupro, à violência doméstica, ao medo de andar na rua.

Mas a Hermione sabia o que estava falando. Ela não escorregou dizendo que o machismo afeta igualmente homens e mulheres, apenas cutucou os homens para que eles vejam a dimensão do machismo, para que assim, de repente, alguns homens vão perceber que feminismo não é coisa de “lésbicas odiadoras de homens”, mas diz respeito a eles também. Ser feminista não é abrir mão de ser homem.


Nenhum país no mundo se pode dizer igualitário em relação a homens e mulheres. NENHUM. Por isso, Emma repete essas frases simples e convocadoras:
Se não eu, quem?
Se não agora, quando?
Chega de ter medo de se dizer feminista, chega de odiar feministas, chega de querer controlar o feminismo. Acredita em igualdade (de verdade) entre homens e mulheres? Então assume o teu feminismo.

Para quem não assistiu ao vídeo ainda:


by Ananda Vargas

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

mulher de vermelho

o que será que ela quer
essa mulher de vermelho
alguma coisa ela quer
pra ter posto esse vestido
não pode ser apenas
uma escolha casual
podia ser um amarelo
verde ou talvez azul
mas ela escolheu vermelho
ela sabe o que ela quer
e ela escolheu vestido
e ela é uma mulher
então com base nesses fatos
eu já posso afirmar
que conheço o seu desejo
caro watson, elementar:
o que ela quer sou euzinho
sou euzinho o que ela quer
só pode ser euzinho
o que mais podia ser

"da série "mulher de" in: Um útero é do tamanho de um punho
Angélica Freitas

Uma mulher de vermelho está para além de uma visualidade. Uma mulher de vermelho é rastro, é vestígio de sua história, a história universal que toca a todas as mulheres. Assim como não há forma sem formação, não há imagem sem imaginação.

A forma de uma mulher de vermelho:
Marilyn Monroe, usou batom vermelho desde 1946.
Os homens preferem as loiras (1953)
Como agarrar um milionário (1953)
O pecado mora ao lado (1955)



Frida Kahlo, bissexual, teve um caso conjugal com Leon Trotski,
My grandparents (1936)
Roots (1943)
Sin esperanza (1945)



Cláudia Ferreira Silva, trabalhadora, negra, seu sangue inundou o peito e as ruas.
Acordou cedo.
Comprou pão.
Criou filhos.



A imagem como imaginação de uma mulher de vermelho:
Imaginar é mais que pertencer a uma possibilidade ficcional, frívola, não real. Imaginar é realizar. Uma mulher de vermelho toca o real, pois sua imagem arde, queima por meio da história, é cinza e é incômodo.

Porque imagem é outra coisa que um simples corte praticado no mundo dos aspectos visíveis. É uma impressão, é um rastro, é um traço visual do tempo que quis tocar, mas também de outros tempos suplementares - fatalmente anacrônicos, heterogêneos entre eles - que não pode, como arte da memória, não pode aglutinar. É cinza mesclada de vários braseiros, mais ou menos ardentes.

Shoshanna, Bastardos Inglórios (2009), judia, pinta o seu rosto diante de um espelho. Com a ponta dos dedos e blush, um gole de vinho, traça em vermelho a morte de Hitler.



Toda a mulher é uma mulher de vermelho.


Referência
Citações em itálico - Didi-Huberman. Quando as imagens tocam o real (2010). Disponível em eba.ufmg.br/revistapos


by Raquel Leão


ruído

Saio às 6h55 de casa carregando duas bolsas com materiais de aulas, pastas, provas dos alunos, livros, apagador e canetas. Vou de ônibus para a escola, é bem perto, chego em 15 min.

Entro no ônibus e dentro dele só tem homens. O ônibus não está lotado, posso escolher vários lugares, vários lugares do lado de vários homens. Os homens estão todos olhando pra mim aguardando a minha escolha. Qual desses que essa guria quer. Não posso pensar muito tempo, a escolha deve parecer natural. Crio uma lógica que não faz sentido para justificar a minha escolha pra mim. Sento do lado de um dos homens. Nem queria essa vadia do meu lado.

Percebo que esqueci de passar batom e meus lábios estão muito secos pelo vento que peguei na rua. Queria passar batom, será que posso passar batom? Tenho que ser discreta, nenhum desses homens pode ver meu batom. Passar batom é um convite. Venço o medo e passo o batom toda encolhida, quase com o rosto dentro da bolsa. Será que ele viu que eu passei batom? Ela só pode querer alguma coisa, mulher que passa batom no ônibus é porque quer alguma coisa.

Lido com o desconforto do banco, do ar, da tensão, dos medos, das neuroses, do peso das bolsas. Falta metade do caminho. Os dois bancos da frente ficam livres. Posso mudar de lugar, ficar sozinha, sem nenhum homem do meu lado, olhar pela janela, fazer de conta que não estou cercada de silêncios cheios de significado. Será que mudar de lugar não é pior? Mudar de lugar significa admitir o desconforto, o desconforto com a presença masculina do meu lado. Desconforto porque eu sou macho. Ficar no lugar significa estar gostando do desconforto. Ela não troca de lugar, ela me quer. Decido no impulso e troco de lugar. Fico de costas para o desconforto, mas ele não deixa de existir.


A próxima é a minha parada. Levanto, puxo a corda e aguardo de pé. Quando o ônibus para e abre as portas, ele levanta e sai comigo. Aquele que eu havia escolhido e depois recusado. Ele vai fazer alguma coisa, não havia feito nenhuma menção de que aquela era a sua parada, só levantou na última hora e foi atrás de mim. Vou atrás dessa vadia de batom. Ele segue atrás de mim por 5 min e dobra. Muda de direção sem nem olhar pra trás. 

by Ananda Vargas

mulher casada

A mulher casada é muito feliz e completa, ela achou seu homem, tem a sua casinha, pode ter filhos e até parar de trabalhar.



Toda mulher deve ser de respeito, mas a mulher casada mais ainda. Ela já tem dono, ela não pode sair por aí chamando a atenção dos homens. Mulher casada não usa vestido curto, nem batom vermelho, não vai pra balada, nem bebe. Se comporta, espera seu marido com a casa limpa, estando ela também bem limpinha e penteada.

Tem também a mulher casada “moderna”. Essa trabalha, é “independente”, se preocupa com a carreira e vai esperar até seus 30 anos para ter filho. Ela não limpa a casa sempre, mas paga uma empregada pra isso, já que ela tem dinheiro e trabalha fora. Claro que a empregada não dá conta de tudo, aí a mulher casada moderna lava aquela loucinha que sobra, tira o pó de um cantinho que faltou, guarda as cuecas do marido na gaveta. Onde a mulher empregada falhou, a mulher casada moderna age rapidamente cobrindo o erro; o marido nem percebe.

A mulher casada moderna tem direito de sair com as amigas. Uma girl’s night out uma vez por mês, bem marcada e programada. Normalmente com as mesmas amigas, pra tomar uma tacinha de vinho e experimentar uma receita light que uma delas recentemente descobriu. Ou, de repente, as mulheres casadas modernas reservam essa data querida com as amigas para abusar e comer um negrinho. A mulher casada não pode engordar, ela se preocupa em manter o maridão interessado.

A mulher casada deve ser uma boa mistura de mãe, mulher sexy (só dentro de casa, diante do marido), dona de casa, cozinheira, trabalhadora e ainda se orgulhar de ser essa mulher maravilha tão idolatrada nas propagandas de produto de limpeza. Mulher casada não pode ser feminista, ela não precisa disso, ela já é casada, é completa, é feliz.

A casa da mulher casada é sempre limpa e organizada. A louça não forma pilhas enormes na pia, as roupas estão sempre limpas e passadas, há sempre comida na geladeira. A mulher casada não dorme até às 11h, não é preguiçosa. Se algo estiver fora do lugar, a culpa é da mulher casada, afinal homem nem percebe essas coisas, não foi criado para isso.

A mulher casada foi criada para ser casada, para ser boa esposa, boa mãe, boa dona de casa, boa cozinheira e ainda gostar disso tudo.



Eu sou uma mulher casada. Sou feliz e completa. Faço comidinhas e bolos especiais para o meu marido. Decoro a casa com cortinas e almofadas que eu mesma costuro. Faço janta e espero meu marido sentada lendo um livro no sofá, bem cheirosa e penteada com minha camisola de bolinhas e rendas. Limpo cantinhos no banheiro que meu marido não sabe limpar. Vou pra festas com amigas e amigos e rebolo até o chão (às vezes até cair), bebo cachaça e tequila, chego em casa às 5 da manhã e vou dormir suada e com a maquiagem ainda no rosto. Programo o meu dia de acordo como eu quero. Engordo, durmo, fico três dias sem lavar nenhuma louça ou roupa. Cuido do meu marido, faço cafuné, massagens e o que mais eu e ele quisermos. Tenho insônia, levanto da cama no meio da noite e escrevo segredos só meus. Brigo, xingo. Bebo, fumo, canto e danço. Escuto Valesca Popozuda. Faço cupcakes com cobertura cor de rosa. Uso batom vermelho e saia curta. Rio muito alto, chamo atenção, discordo do meu marido. Ser casada não é o único motivo da minha felicidade e completude.

by Ananda Vargas

solteira, mora com dois gatos

Desde que comecei a morar sozinha minha pia mantém louça suja. A louça é suja, a máquina de lavar está sempre cheia de roupas, a poltrona do quarto serve pra eu atirar tudo o que usei na semana ou o que tirei pra ver se usava. O fato de eu viver sozinha e não trabalhar tantas horas de carteira assinada pressupõe pra muita gente que minha casa deveria ser um brinco.

É que eu prefiro fazer outras coisas a arrumar a casa, o tempo inteiro. Todo mundo que sustenta sua casa sabe que louça e roupa são um carma, nunca se acaba e não se sabe quando começou. Mas nem um homem mora contigo, como é que o banheiro parece de rodoviária? Eu moro com dois gatos.


Além de preferir ver séries antes de lavar louça; preferir beber com os amigos a esfregar o pátio do apartamento; preferir fazer um café bem forte e perfumado ouvindo meus discos e lendo alguma coisa, eu também prefiro deixar meus gatos correrem loucos pela casa, derrubarem meus batons da bancadinha do banheiro, tomarem a água do chuveiro e encher de marcas de patinha molhada pela sala ou rasgar papel higiênico. Eu sou permissiva.

Mas essa contação toda é um pano de fundo pra um estereótipo que se abateu sobre mim assim que pagar a minha vida ficou mais tranquilo. É um tema conhecido esse da mulher sozinha, pobre coitada, que de tão sozinha começou a pegar gatos pela rua pra sanar superficialmente sua solidão sem fim, afinal, nem um homem bom, trabalhador e gentil a quis para casar – casar com ela, desprovida de inteligência e ação.

O caso é que já fui casada. E a casa limpa que eu tinha e nenhum gato pra sujar o mármore da pia não fez da minha vida uma felicidade sem fim. Ao contrário. Eu precisava era da escolha. A escolha de ser quem eu sempre fui. Uma sujona? Capaz! Eu sempre fui uma criatura faceira de dar gosto e a minha casa e meus gatos materializam esse caos interior, dramático e bonito, que quase todo mundo tem.

Mulher vive sob o jugo de estereótipos, de mil tipos: a gorda, a mal comida, a seca de ruim, a invejosa, a fofoqueira, a mentirosa, a traída, a doninha de casa, a solteirona dos gatos. O que muita gente que reafirma isso não quer pensar de vez em quando é que mulher pode se amar sendo gorda; que mulher sabe se comer e quase sempre não tem a ver com um corpo necessariamente masculino pra atividade; que mulher pode ser amiga das amigas e dar o coração por isso, mais até do que por um relacionamento hetero e previsto; que mulher pode amar fazer comidinhas em casa pro marido e que isso não tem a ver com submissão; e que uma mulher pode querer muito ter seus gatos, o que não significa ser mal amada – não é parte da genética de um gato viver com mulheres solteiras. No fim das contas, mulher fica bem feliz em poder produzir sua própria sujeira.

by Raquel Leão