-Hummmm, veio hoje de candoca?
-Como assim?
-Candoca é quando uma mulher jovem decide se vestir de
velha pra impor mais respeito.
-E como eu deveria estar pra ti, Diorzinho?
Mindy Kaling, candoca
Há umas três semanas
ouvi essa de um colega de trabalho. Eu usava no momento um vestido de manga
longa, preto, com meia calça. Ou seja: eu estava como na maioria das minhas
aparições públicas, de vestido. Fiquei pensando no mundo desse colega: mulheres
~jovens~ não se vestem como eu; mulheres ~velhas~ se vestem como eu. Depois de
mandar ele à merda na minha cabeça e atender uma fila de pais e mães dos alunos
que tinham ficado em recuperação e que, sabe-se lá o que decidiram julgar
acerca de como eu estava vestida,
tatuagem grande no braço, piercing no nariz, e esse
vestido, esse vestido de candoca, transparente logo nesse braço, não deve ter corrigido as provas direito com
esse vestido.
Segui pensando em
uma possível necessidade recorrente que as pessoas têm de tecer ~elogios~ uns
para os outros no trabalho. Sim, incrivelmente o caso da candoca deslizava na fronteira
entre elogio e crítica.
Parabéns, hoje tu estás digna para atender os pais,
pois mulheres mais velhas são mais sabidas e melhores professoras de Português
que as mais novas, que tem cara de que não conseguem proteger a Língua
Portuguesa... são as mesmas que querem queimar a gramática de certo... mas hoje
não, hoje tu vai proteger a língua, porque se fantasiou adequadamente.
Virginia, aquela candoqueira de praia
Obviamente meu colega
presta atenção nas pessoas lá do jeito dele, com as categorias de mundo pras
quais ele parece ter nascido e evita desnascer. Além de nunca ter notado que
uso vestidos o tempo todo (porque calças jeans não foram feitas pra pessoas com
pouco quadril e gordura localizada como eu; ou pra pessoas com muito quadril ou
pra pessoas) e de ter deixado claro suas categorias pra alguém que jamais as
quis conhecer, ele se sentiu livre o suficiente pra falar da minha aparência. E
pra falar de juventude e envelhecimento. E pra sair caminhando faceiro, como
uma pessoa bacana, que é simpático e conversa com todo mundo. Disso decorre uma
série de tópicos que parecem elogios nas conversas entre colegas, mas que a
gente pode problematizar do ponto de vista dos discursos implicados neles.
Menina, nossa, como tu emagreceu!
Esse eu escuto de
tempos em tempos. E, em geral, a pessoa referida como magra não responde e daí?, lavar loucinha, ahn ahn? mas obrigada
sempre rola, um sorriso enorme e muitas conversas subsequentes sobre dietas
mil, pilates, treino, jump, pump, vamp, dance, blurp, sementes secas que um
passarinho do norte defecou em alguma terra sem glúten. O mais estranho é que
já notei que às vezes a pessoa não emagreceu, mas alguém decide que ela está
meio triste ou deprê e solta essa, que é pra
ver se anima, se melhora a autoestima, porque claro, ser magro é melhor que
ser gordo néééaaaann.
Que lindo tá o teu cabelo! Fez progressiva?
Teu cabelo está
lindo por fazer progressiva? É isso mesmo que tu precisa dizer pra alguém que
fez progressiva? Eu raramente escuto alguém dizer que lindo teus dreads;
bacana tu ter passado a zero, amiga; esse teu cacho é tão enrolado que depois
que eu entro nele eu não consigo sair mais, teus cachos me dominam, vou fazer
um permanente; inveja do teu afro exuberante...
Tu é tão bonita, podia te maquiar mais, assim, tirar
esse moleton...
Dizer que a pessoa é
tão bonita que se ela se arrumasse melhor ela seria tão melhor que ela mesma - chega
a ficar confuso. Esse é duro e é de matar.
Que chique que tu tá hoje, hummm, comprou onde, na Zarannn?
Cito a Zara porque
nem sei o que é que é chique, pra ser sincera. E por tudo o que significa
comprar num lugar como esse – o que isso te faz significar no mundo, em muitos
desdobramentos. Mas esse elogio, confesso, me causa ânsia de vômito. É tão
triste por medir o salário da criatura pela etiqueta, que chega a ser clichê eu
estar escrevendo isso. Mas vai além disso – é a redução mais substantiva da
pessoa, que já tá atolada pela Zara, ao nada do convívio.
E o que sobra?
Prestar a atenção
nesses pequenos grandes detalhes parece uma forma de nunca relaxar, nem nos
momentos aparentemente mais simples e tranquilos de estar com outras pessoas.
Mas quem mesmo acredita que o discurso relaxa? Alguém aí? Palavra que descansa
é palavra perigosa.
É fácil e confortável
reduzir o contato com alguém à coisa nenhuma - mais fácil ainda com uma mulher. Porque, pra não ficar em silêncio, eu saio assim, dizendo esse monte de banalidade.
O que mais tem no mundo é gente besta e pau seco. Manoel
de Barros
E por que é melhor
ser besta ou pau seco se a gente pode brotar muito mais, conhecer as pessoas de
verdade, silenciar meus pensamentos sobre seus cablos, olhos, bolsas?
Rarissimamente
alguém no meu trabalho elogiou ou quis debater algum projeto que desenvolvi;
algum artigo acadêmico que escrevi; algum livro que tenho lido; algum filme
romeno que me desestabilizou e que meus olhos abobados não param de falar
sobre. Mas eu digo querer saber de verdade, querer realmente desconfortar a
conversa, ir mais fundo e violentar o que pode ser tratado por estereótipos e
metaforinhas pré-fabricadas antes de eu nascer.
Não se trata aqui da
inocência pobre miserável de dizer que é mais importante o que as pessoas tem por dentro, porque esse papo de
essência e aparência o Nietzsche já deu conta faz tempo. Se trata de
reconfigurar as imagens que criamos. Somos nossas imagens e elas tem nuances.
Se trata de perguntar que visualidades procuro criar com aquelas que convivem
comigo?
Sou professora e dou
aula pra crianças extremamente fofas e lindas em toda a magnífica fofura que
pode haver nos dentes caídos, nas coisas cor de rosa que usam, nas bochechas
infladas de vida. Mas é sobre isso que se fala com uma menina ou um menino? É
isso que ressaltamos ao falar com uma criança? Tenho uma alma afetiva e sei
como é duro esse monitoramento, porque fui educada para ser assim, mas tento
desnascer nessa educação. Até porque, não é deixar de ser afetivo com os
outros, ou parar de ressaltar aquilo que vemos de mais bonito nas pessoas, mas
é evitar o caminho mais fácil e programado de entender “afeto” e “beleza”.
Esse texto da Lisa
Bloom é tão bonito sobre isso:
Eu me esforço para falar com as meninas assim:
“Maya,” eu disse, me ajoelhando até ficar da sua
altura, olhando em seus olhos, “prazer em conhecê-la”.
“O prazer é todo meu,” ela disse, com a voz já bem
treinada e educada para falar com adultos como uma boa menina.
“Hey, o que você está lendo?” Perguntei, com um brilho
nos olhos. Eu amo livros. Sou louca por eles. Eu deixo isso transparecer.
Seus olhos ficaram maiores, e ela demonstrou uma
empolgação genuína, mas contida, sobre o assunto. Ela pausou, no entanto,
tímida por estar com um adulto desconhecido.
“Eu AMO livros,” eu disse. “E você?”
A maioria das crianças gosta de livros.
“SIM,” ela disse. “E agora eu consigo ler sozinha!”
“Que incrível!” eu disse. E é incrível, para uma
menina de 5 anos.
“Qual é o seu livro preferido?” perguntei.
“Vou lá pegar! Posso ler pra você?”
Isso tudo me faz pensar um conto da Clarice, que faz parte do livro “Via Crucis do Corpo”. No
conto, “Ele me bebeu”, a personagem Aurélia tem seu rosto apagado por um
maquilador, o Serjoca. Eles tinham uma relação bastante profunda de amizade. Serjoca maquia Aurélia para que ela fique bonita para encontrar um homem:
Então, enquanto era maquilada, pensou: Serjoca está
me tirando o rosto. A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia,
uma cara só de carne. Carne morena. Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao
banheiro para se olhar no espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca
tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos –e tinha uma ossatura espetacular –
mesmo os ossos tinham desaparecido.
Já tava quase esquecendo, Clarice, essa candoca do meu coração
By Raquel Leão