sábado, 14 de fevereiro de 2015

mãe, eu te amo, não seja machista

Mãe, por te amar muito, peço pra tu não me dizer, aos 10 anos, que preciso encolher a barriga, porque homem nenhum gosta de barriga. Por favor, aos 4 anos não me veste como um boneca, não me dá de presente tantas Barbies magras e peitudas, de cabelo loiro e liso, pra que eu aprenda desde sempre que é errado ter meu cabelo crespo e escuro. Se puder, aos 13, não me leva à depilação pra fazer minha sobrancelha que começa a engrossar. Mãe, não se veste como eu aos 15, porque EU terei 15.

Se não for pedir muito, não me vem com essa que aos 27 deveria estar casada e ter filhos, porque morar sozinha me tornou uma mulher rodada - e isso te faz sentir vergonha. Não permite que meu irmão chegue aos 25 sem saber usar uma máquina de lavar roupa. Não serve a comida dele. Não organiza as roupas dele. Não chama de vadia a menina que engravidou com ele por acaso. Não finge que o aborto é uma coisa horrível, depois de ter feito o teu em clínica de luxo. Não paga a faculdade dele até os 30 ou a TV a cabo.

Lembra quando tu contava que a vó uma vez, lá nos anos 40, tomou um soco do vô bem no queixo e um pontapé na barriga, porque os filhos estavam fazendo muito barulho na hora da janta dele? Lembra também que a vó dizia que a mulher é o lixo do homem? Pois é, eu nunca vou esquecer disso. Tu me disse isso aos 7 anos. A mulher é o lixo do homem, que ele vai lá e despeja tudo o que não presta dentro dela. Mãe, eu to pra te contar faz tempo que mulher é uma construção. E vai doendo até se edificar. Se edifica pelas rachaduras.


Então, quando tu me disse pra não usar minissaia na rua, eu edifiquei, e desmoronei. Quando tu falava que depois que um cara transasse comigo, eu nunca mais ia ter o mesmo valor, tu construiu um pouco de mim, e fiquei diferente. Quando eu comprava pílula escondida de ti, pra tu não descobrir que eu não era virgem, eu já conhecia uma parte bastante cruel de ser mulher. Então, mãe, queria não ter visto tu apanhar do pai e depois, ter dito que a mulher pensa com o coração.

Queria que tu não tivesse se ocupado de cuidar das bebedeiras dele e do meu irmão, que sempre pode chegar às 4h em casa, enquanto eu só podia ir no shopping - que é coisa que mulher de classe média pode fazer sem ser feio ou esquisito. Queria ter te dito que eu gosto mesmo é de mulher e que, apesar da tua forçação de me fazer ser feminina, eu sou uma mulher.

Eu fico triste de ver que hoje tu te tornou uma mulher interditada. Ao mesmo tempo, quando tu me ensinou que havia o jeito certo de ser mulher, que eu devia usar biquini na praia, que maiô era coisa de gorda - e que ser gorda é ruim; que eu podia falar mal das minhas amigas, já que mulher nenhuma é amiga de verdade; quando tu me ensinou que era perigoso demais andar na rua de noite, porque rua e noite não são coisas de mulher direita; quando tu me disse que é sempre melhor ficar na minha do que discutir com homem; quando tu me alertou que os melhores cabeleireiros são sempre os gays; quando tu fez eu achar que existia mulher direita e mulher da pá virada, eu vi, mãe, bem na minha frente, que te fizeram achar que a mulher é pra ser um conjunto habitacional, tudo igual, tudo rebocado, só muda a cor. Mãezinha, eu te amo, e eu sou a biscate da pá virada que te fizeram acreditar que só existia na família do vizinho. Mãezinha, não continua fazendo das minhas irmãs as afilhadas sem futuro do teu machismo. 


*Com ajuda da Angélica Freitas, uma cartinha ficcional, depois de tantos relatos, tantas conversas com mulheres sobre o que as mães andam fazendo por aí.

9 comentários:

  1. Que texto mais do caralho! Obrigada, Raquel! :)

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  2. Ou não do caralho, né, porque, enfim... ;)

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  3. Obrigada, Duda! Que bom que tu gostou! Um beijo!

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  4. Genial, genial genial! Sem explicação pra quanto me identifiquei. Não com todas as partes, mas a grande maioria me tocaram seriamente. Ge-ni-al!

    algumlugarnalua.blogspot.com

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  5. La clave está en la deconstrucción, la más ardua tarea de reinventarse, de "des machizar" nuestra mentalidad.
    Larga vida a esta lucha de justicia, igualdad y respeto!
    Felicidades y nunca paren con este trabajo!

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  6. La clave está en la deconstrucción, la más ardua tarea de reinventarse, de "des machizar" nuestra mentalidad.
    Larga vida a esta lucha de justicia, igualdad y respeto!
    Felicidades y nunca paren con este trabajo!

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  7. Obrigada, Leo, pela leitura, incentivo e compartilhamento de lutas!
    Beijoooooo <3

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  8. Todos somos construção. E as vezes todos temos que nos desconstruir. Quem sabe um dia passaremos a nos ver como pessoas ao invés de através dos rótulos que nos ensinaram?

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  9. Será que a autora do texto conhece minha mãe? Porque ela reproduz praticamente todas essas atitudes, e eu fico perdida tentando arranjar um jeito de mostrar pra ela que eu não sou obrigada a nada disso!

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