quinta-feira, 19 de março de 2015

o individualismo cego de cada dia

Aprendi com um filósofo bem legal (tio Foucault) e com a minha orientadora (da vida acadêmica e da vida vida mesmo; ela ia me matar se visse essa divisão de vidas aqui, mas é uma permissão “poética-blogueira”) que a gente precisa sempre estar atento aos problemas do nosso tempo. O que hoje parece circular por aí em vários lugares, conversas, discursos? Pois então, o que vejo rolando em discussões políticas, em deslegitimação do feminismo, em mesa de bar, em fofocas sobre os amigos é o seguinte: a galera não se desloca do seu individualismo, não consegue se ver (e nem os outros) como sujeito social, há uma crença de que cada um é uma coisinha especial e diferente e cada caso é um caso e que “eu não faço tal coisa”, “eu não digo isso”, “comigo ele é um cara legal”.

O que parece importar é só o que TU viu, o que TU sente, o que TU percebe. E o que acontece quando tu não experiencia nada, não percebe nada?? Aí tu não sabe NADA e deslegitima TUDO! 



Ouvi esses dias uma entrevista com o Fernando Haddad na Jovem Pan em que o inteligentíssimo entrevistador quis dizer que as ciclovias feitas pelo prefeito eram inúteis. Ok, até aí é só uma opiniãozinha de quem adora um cheirinho de carro novo e um ar-condicionado. Mas como ele quis mostrar que ninguém usa as ciclovias?? Dizendo que ele passa lá de carro e não vê ninguém andando de bicicleta. O prefeito trouxe dados sobre o número de ciclistas e sobre como funciona isso: primeiro se faz ciclovia e depois surgem os ciclistas. Mas, mesmo assim, a pessoa só lembrou dos 10 minutos por dia que ele passa ao lado da ciclovia e que ELE não vê ninguém. ELE não vê. Não interessa se mil pessoas dizem que veem, porque os olhinhos individuais e fofos dele não veem.

A mesma situação aconteceu com a manifestação de domingo. Uma galera falou: EU não vi nenhuma faixa de intervenção militar. Tem um milhão de fotos mostrando essas faixas, vídeos de gente defendendo a ditadura, mas EU não vi, então não aconteceu.

Isso acontece todos os dias nas tentativas de deslegitimação do feminismo. O maior medo dos anti-feministas é a generalização. TAN DAN DAN! Imagina, quando a gente fala OS HOMENS a gente tá fazendo uma generalização horrível e sempre tem um homem pra nos dizer: nem todos os homens, ou eu não faço isso. 

Não precisa ter medo da generalização quando se está lendo uma análise social. É óbvio que não são absolutamente TODOS os homens do mundo que fazem certas práticas machistas, mas quando falamos OS HOMENS estamos falando desse sujeito que carrega marcas sociais e discursivas, que é social, que produz verdades que se reproduzem nas mídias. Não é tu homem, aí sentado no teu sofá, vivendo a tua vidinha, é o homem social, o sujeito que representa uma série de coisas. Tu, homenzinho específico, pode se encaixar nesse homem social às vezes, e outras vezes se distanciar disso. Isso se chama ser uma pessoa complexa, que muda, que se assujeita a diferentes enunciados existentes ao teu redor. Parabéns, tu é um ser social!



O texto mais lido desse blog (até agora não entendi, até tenho peninha dos outros textinhos que são tão legais) é sobre empoderamento e higiene feminina. Esse texto tem mais de 400.000 visualizações. Por isso chamou tudo que é gente pra comentar. Rolou briga, rolou discurso de ódio, passamos dias respondendo cada um dos comentários tentando iluminar essas almas perdidas que aqui vieram nos reduzir a feministas mal-comidas e peludas. Pra quem não fez parte dos 400 mil, o texto fala sobre a higiene feminina ultrapassar a questão saúde e chegar em um ponto opressivo, não permitindo nenhum sinal de “sujeira”, de “natureza”, de “corpo” na mulher, mas, ao mesmo tempo, esse tipo de comportamento não se aplica aos homens que não precisam se depilar, usar tudo que é tipo de produto para evitar todos os seus odores naturais. Claro que a galera achou que a gente estava defendendo que as mulheres TODAS deveriam parar de tomar banho, deixar crescer todos os pelos do corpo, nunca mais usar desodorante e ainda exigir que TODOS os homens do mundo achem elas sexys e maravilhosas. Não foi bem assim, gente.

Vou usar como exemplo alguns comentários que se seguiram nesse texto, mas que representam o individualismo exacerbado que podemos ver em qualquer discussão (sério, desde que conversa na reunião de condomínio, até debates políticos):






Todos esses comentários fazem a mesma coisa: trazem uma experiência pessoal para deslegitimar uma análise social. Isso porque as pessoas parecem não conseguir enxergar discursos que circulam na sociedade. Tudo bem que tu não pensa certas coisas, mas tenha a inteligência de perceber que elas existem. Eu não acho que mulher que usa minissaia é vadia, mas esse é um discurso que existe. Eu não acho que homem não pode chorar, mas esse é um conhecimento bastante forte na sociedade. Eu não acho normal e engraçado um cara arrotar, mas isso está nos filmes, na TV, na vida por aí. Não é porque tu não acha uma coisa que ela não existe. O mundo é muito maior do que os teus achismos. 

As generalizações vão acontecer num bom texto de análise de comportamento. Até porque não são generalizações, são recortes de modos de pensar e agir que se tornam relevantes para pensar a atualidade. Comparar as práticas de higiene do homem e da mulher é relevante e é, sim, predominante o pensamento de que mulher tem que ser mais limpa e cheirosa que homem. Se tu só gosta de homem depilado e cheirando a rosas, legal, vai lá e aproveita teus gostos, mas não ache que isso se aplica aos outros e nem que isso deslegitima um pensamento dominante.



Para ficar mais claro, toda vez que tu te vê numa discussão sobre qualquer assunto que rola pelos faces da vida, não faça o seguinte:
EU não acho
EU não faço
EU não vi

Esquece o EU individual e sozinho no mundo e lembre que não há saber neutro. Tudo é político. As tuas decisões mais cotidianas são políticas. A roupa que tu usa, a comida que tu come, o teu emprego, o teu cabelo, o teu peso, o teu meio de transporte. TUDO é social. Tu não tá sozinho nas tuas decisões e as tuas percepções não representam a verdade do mundo.

Isso vale também pra quando tu tá fofocando com os teus amigos sobre o pobre amigo que teve a infelicidade de não ir no bar aquele dia. Quando um dos teus amigos fala assim: “esse cara é tri machista!” Tu não pode dizer: “comigo ele nunca foi!” Isso não é argumento. Aí a pessoa conta: “esse cara não deixa a mulher sair sozinha e usa “viado” como uma ofensa!” E tu responde: “mas comigo ele é super respeitoso, nunca foi homofóbico e é um querido!” Não, não faça isso. O jeito querido que esse amigo é contigo não muda o fato dele ser homofóbico. Pode continuar sendo amigo dele, mas reconheça que não importa só como ele é contigo, mas como ele é como um sujeito social.

Olhar para os outros e pra si mesmo como fazendo parte de uma gama de discursos é muito libertador! Tu te conhece melhor, tu vê o teu papel na sociedade como produtor e reprodutor de ideias. E isso não significa não te preocupar contigo e achar que tu é igual a todo mundo. Na verdade, se ver como fazendo parte dessa massa de gente que vive por aí te faz perceber que as tuas pequenas ações são super importantes para as mudanças que tu quer no mundo. Não adianta fechar os olhos e dizer que não existe machismo, nem racismo, nem homofobia só porque tu não vê, ou tu não é. Reconhecer o quanto tu faz parte das coisas ao teu redor é um ato político libertário (e até lindamente anárquico).

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