quarta-feira, 29 de abril de 2015

wild

"Wild" (Livre) é um filme lançado no fim do ano passado, dirigido por Jean-Marc Vallée e se trata da história de uma mulher que resolve fazer uma trilha pela PCT (Pacific Crest Trail), uma caminha da de 4.260 km. Pra quem já viu "Into the wild" (Na natureza selvagem), essa é a história se o Alexander Supertramp fosse uma mulher, e isso muda tudo.

Primeiro porque ela tem que ter um motivo específico e ligado a um homem para decidir fazer algo tão lunático assim. O Alexander Supertramp é um anarquista, utópico, cheio de sonhos de como viver a vida. Mas a Cheryl é uma mulher se recuperando de um relacionamento. Pelo menos é isso que o omizinho aqui embaixo pensa. 


Homem nenhum fazendo uma trilha pensa que vai ser estuprado a cada outro homem que encontra. Com Cheryl a gente morre de medo toda vez que isso acontece. A gente tem certeza que um dos caras pelo menos vai estuprar, bater, roubar. O filme é extremamente tenso por isso, o espectador sofre pela suposta fragilidade de uma mulher pequena e magrinha caminhando sozinha e encontrando homens grandes e assustadores. Esse clima fica bem claro quando sabemos que a Cheryl leva com ela um apito para tentar garantir que alguém irá ouvir se ela foi atacada.


Cheryl realmente encontra muitos homens. Todos eles parecem ameaçadores. TODOS. Na verdade, mentira, tem um grupinho de 3 caras que são tão adolescentes que não passam a sensação de medo. Eles só estão lá pra trazer um mimimizinho básico de gurizinho que não sabe nada da vida.



Dizer não e ser estuprada no carro mesmo ou ir até a casa dele e tentar fugir?


Ou usar a mentira básica de que está acompanhada? Quantas mulheres precisam dizer que tem namorado para não serem assediadas?



 Não, esse não estuprou. Só largou uma série de frases machistas durante o jantar.

O fato de Cheryl ser uma mulher é sempre uma questão, em qualquer interação. Por exemplo, quando ela encontra uma outra mulher que imediatamente pensa que Cheryl é vadia/prostituta/fácil ou algo do tipo, que não acredita que ela vai passar o noite no hotel sozinha.



O filme não é linear, o passado de Cheryl é contado aos poucos por flashbacks, muito parecido com o "Into the wild". Cenas com a sua mãe, com seu ex-marido, usando drogas e com os vários caras que ela transava todos os dias, numa fase de vida de autodestruição, são intercaladas com suas aventuras na trilha.


Cheryl estuda na Universidade junto com sua mãe e ambas debatem temas feministas e escritoras revolucionárias. Ela também lê muito, assim como o mencionado Alexander Supertramp. Mas a maioria de seus livros são escritos por mulheres. Cheryl está lá naquela caminhada por causa de mulheres, por mulheres, sendo mulher.




Esse é um filme feito de imagens escuras, interações e poucas frases. O que é significativo não são os desafios do caminho com neve, falta de água, pouca comida, machucados nos pés. O que está em jogo aqui é ser mulher e estar sozinha, "desprotegida", encontrando vários homens dispostos a serem esses tais "protetores". Nem todo homem que Cheryl encontra a trata mal, na verdade vários deles são muito simpáticos. E aí está outro jogo: a própria simpatia deles é uma agressão. Por que eles se oferecem para comprar refrigerante e comida? Por que eles lhe trazem café? Sempre querendo algo em troca, sempre olhando pra ela como uma coitadinha que não irá sobreviver se um homem não ajudá-la.





Ela consegue tantos "favores" que esses 3 carinhas adolescentes do qual falei pensam que ela é privilegiada, pois eles não ganham nada, ninguém os ajuda, mas ela vive ganhando presentinhos de caras na caminhada.



Aqui está perfeitamente explicado e exemplificado o tal "privilégio" feminino que muitos homens clamam existir, e nos chamam de vitimistas quando reclamamos, pois já ganhamos muitas coisas, não temos do que reclamar. Pois é, ela tem muitas histórias de caras "ajudando" ela. Pensem um pouquinho só porque isso acontece com uma mulher andando sozinha por aí e não com três homens jovens?

A única pessoa que não tenta ajudar ela é a única mulher que ela encontra no caminho.


As duas ficam muito felizes de se encontrarem, pois não tem mais nenhuma mulher fazendo essa trilha. Elas são companheiras, dividem uma bebida, conversam e cada uma segue seu caminho. Nenhuma tentando diminuir ou "ajudar" a outra.

Não se pode fazer uma história sobre trilhas e caminhadas com uma mulher, pois a história vai acabar sendo sobre fazer trilhas e caminhadas sendo uma mulher. Ser mulher muda tudo, redefine todas as interações e acrescenta uma tensão que não seria possível se um homem fosse protagonista. Esse filme é uma análise social de gênero concentrada em uma mulher e uma experiência de radicalidade. Esse filme mostra como é diferente um cara caminhando na rua e uma mulher, como todas as relações mudam, como é ser mulher e tentar fazer algo que só é feito majoritariamente por homens. Como é ser mulher e rasgar papéis sociais por onde se passa.

terça-feira, 28 de abril de 2015

just sex

Tenho uma amiga que, como eu, concluiu esses dias que o melhor a se fazer numa sexta à noite é abrir um vinho, ver filme e dormir com os gatos. Isso é realmente bom de se fazer, sempre que possível, aliás - recomendamos. Mas na conversa, a questão era a cadeia de sextas feiras que ela estava acumulando, com caras cheios de papo, encetando jogos (ai, os games) e cenas, contando sobre suas vidas xuuuuuper interessantes, seus cursos de inglês em algum país europeu,  falando dos seus ex relacionamentos com minas loucas, sobre como curtiam minas cheias de atitude, que chegavam e pá etc etc. O cara só fazia ser bleh na vida. E ela só queria transar. 


O problema é que, provavelmente, todos esses caras dos dates-cagados também estavam lá só pelo sexo, mas eles não conseguiam sair dessa de se colocarem no papel dos ômis que precisam conquistar as mina, serem desejados por elas, se sentirem fodões pra daí pimba, dar uns pegas lá em casa. 

Dates-cagados podem cagar algumas horas preciosas da tua sexta-feira, pelo simples fato de que os ômis aprenderam que as mina vão se apaixonar, elas vão ser histéricas, vão correr - falocêntricas - atrás desses ômis incríveis do mundo. Gente. Gentshiii. Não. 


Ok, eu sei que os seres humanos adoram uma ficção, uma historinha, uma diegese bááásica. Mas isso cansa, porque nem sempre é disso que se trata. Aliás, quase nunca é disso que se trata. Ou, talvez, trata-se de um novo arranjo ficcional, bem mais bacana, gostoso e sexy: transar, por prazer (que grande descoberta essa, me arrepiei até) e voilà, valeu flws, amigue. Eis o ponto: pra muitas relações casuais, parece haver apenas essa possibilidade de atuação, a da conversa fiada num date que já nasce cagado, porque é a única  interação conhecida (?) esperada (?) 

Caras se assustam com mulheres que têm suas vidas deboístas, que não estão a fim dos seus ricos assuntos numa sexta de noite, que vão transar se tiverem a fim ou os mandarem embora às 2h da manhã, porque isso está fora da previsibilidade de um certo jogo, bastante recorrente. Ah, o jogo! The Game of Sex se intensifica quando o inverno vem chegando.


Tenho um amigo que, minha nossa!, vai às últimas consequências. Ele realmente acha que as minas com quem ele fica (aliás, acho que todas as minhas amigas já ficaram com ele e todas as ex colegas de graduação) desejam sua atenção. E ele quer oferecer isso. Lá pelas tantas, em seus ensejos sexuais/dança do acasalamento ele arma um almoço na casa da mina. Um almoço. E o pior: se a mina não quer o tal almoço (oh, que meigo esse cara), se ela declara seu simples apelo sexual, pronto, acaba por aqui a história. Ele perde completamente o interesse por esse sexo que, afinal, já parecia nascer tão bem resolvido e desprovido de qualquer expectativa emocionada. 


Vamos dar adeus aos dates-cagados e fazer esse amor lindo, livre  gostoso, minha gente. Minas deboístas sigam seu deboísmo, que é disso que nossos corpos precisam. E, por favor, ômis, parem de achar que as minas querem saber de vossas vidas, almoços, games, assim, tão logo lhes conheçam. 

Mais Picasso na praia pra vocês.


Leiam o texto ótimo da Nathali sobre esse assunto, aqui oh!

segunda-feira, 27 de abril de 2015

opressão e privilégio no feminismo

O feminismo não está deslocado de todas as outras lutas sociais. Ser mulher e feminista não te faz não ser mais branca, negra, rica, pobre, magra, gorda, ou qualquer outra característica de classe que defina nossa posição social. As mulheres não são todas iguais, não sofrem as mesmas coisas apenas por serem mulheres.

Já escrevemos aqui tanto sobre termos que reconhecer nossos privilégios, quanto sobre a luta de mulheres negras dentro do feminismo. Acho que podemos juntar essas duas temáticas e pensar mais um pouco sobre como as próprias feministas devem reconhecer os seus graus de privilégios e saber que elas também podem ser opressoras.



Muito se fala em sororidade, em não deslegitimar a dor das mulheres, que somos todas irmãs. O problema é quando esse pedido de "respeitem minha dor" vem somente da mulher branca, magra, rica. E isso acontece muito. Toda vez que uma minoria começa a reclamar seus direitos e mostrar a opressão que sofre, os privilegiados se sentem atacados e começam a gritar "eu também sofro", "respeitem minha dor". E o feminismo obviamente não está livre disso. Acho que muitas mulheres esquecem que ser mulher não significa não ser opressora. Dá pra ser mulher, ser feminista e, mesmo assim, esquecer das dores alheias. 

Quando uma mulher gorda tenta apontar o privilégios das magras, sempre vem uma magra dizer "eu também sofro, não me deslegitima". Quando uma mulher negra tenta mostrar o preconceito da mulher branca, essa mesma mulher branca diz que ela não é racista e que "todas as mulheres são iguais". Não, as mulheres não são todas iguais, e todas as questões sociais devem ser levadas em conta dentro do feminismo. Sororidade de verdade é reconhecer quando se é mulher e mesmo assim se ocupa uma posição de privilégio, e assim se faz o possível para não silenciar aquela que ocupa socialmente uma posição mais oprimida. Gritar por sororidade e reconhecimento não serve quando não se percebe o próprio papel dentro desse jogo de poder.



Não se trata aqui de dizer que as mulheres brancas, magras e ricas não sofrem. Óbvio que sim, pra isso que existe o feminismo, para mostrar que mesmo na classe alta, com uma série de privilégios nas costas, ainda assim a mulher sofre pelo machismo. Tanto que podemos falar sobre machismo só em relação a atrizes de Hollywood, por exemplo. Ricas, magérrimas, lindas, famosas e ainda com salários mais baixos do que os homens, ainda a serviço do gosto e desejo masculino. E isso é horrível e é uma das lutas do feminismo. Mas essa mesma atriz rica maravilhosa deve praticar a sororidade reconhecendo a posição que ela ocupa em relação às outras mulheres. A sororidade se dá a partir de uma relação.

Mulher feminista, toda vez que outra mulher apontar algum privilégio teu, não saia gritando por sororidade, não diga que essa mulher não é feminista porque ela não respeita o teu sofrimento. Se alguém chegou ao ponto de te mostrar que tu tem algum privilégio é porque alguma coisa existe aí, é porque algo tu diz, algo tu faz, ou algo tu deixa de perceber. Em vez de acusar a outra e perpetuar uma posição de opressão, pensa, desacelera, te coloca na posição dessa outra. Alteridade é uma questão de olhar, de posição, de relação. Nem sempre somos o "outro", às vezes somos o "eu" normativo e estamos excluindo o outro. Sororidade só funciona com alteridade.

sábado, 25 de abril de 2015

sobre Camille Paglia

A entrevista com Camille Paglia publicada na Folha de S. Paulo não merecia o destaque que ganhou. Não merecia leitura, não merecia debate. Não merecia diversas feministas concordando e achando que deveriam refletir sobre. Mas foi isso que aconteceu, por isso precisamos fazer o nosso papel e esclarecer as coisas.

Não, aquilo não é feminismo. Ela começa a entrevista se dizendo feminista. Ela está errada. Tudo que ela fala é uma perpetuação muito burra e triste do machismo.

Mas acho que o maior problema dela é sua visão de história linear. Como ela mesma deixou bem claro, Camille não gosta de Michel Foucault. Engraçado que eu passei a entrevista inteira pensando exatamente que estava faltando um Foucaultzinho básico pra ela, até que ela disse que essas ideias estúpidas atuais vieram todas de Michel Foucault. Pronto, ficou claro o quanto o modo de pensar dela é linear, evolutivo, biológico, saudosista.

Não existe o feminismo dos anos 20, o feminismo dos anos 70, o feminismo atual. Essas correntes de pensamento não existem independentes umas das outras, não termina uma para começar outra. Essa é uma forma de pensar história que já deveria ter sido descartada. Alguém que diz que o feminismo bom e certo era dos anos 20 ou 30 e que lá as mulheres eram fortes de verdade, é alguém saudosista, que não entende de história, de condição de existência, de discurso. Camille, desculpa, mas tu não entende mesmo de história, não adianta citar nomes e datas quando se tem uma visão de linha do tempo evolucionista.

Essa entrevista só serve para tentar dar argumentos toscos a pessoas que estão se cagando de medo da força do feminismo contemporâneo. Camille fala em um momento que o feminismo atual está perdendo suas forças. Errou, errou feio, errou rude. Se tivesse perdendo as forças, a Folha de S. Paulo não teria que publicar essa entrevista para tentar enfraquecer aquilo que só se enche de forças a cada dia que passa.

Para Camille, existem dois tipos de mulheres: a maternal e a profissional. Obrigada pelas duas opções de vida, Camille! E pior ainda: ela acha que a mulher deveria ser só maternal e não ficar tentando ter uma carreira e competir com os homens. Camille tem peninha dos homens, que estavam lá tão felizes com seus empregos e agora as mulheres tomaram conta e não deixaram nada para eles, que estão hoje em crise, tadinhos.

Me dei o trabalho de copiar algumas frases dela, porque não dá pra acreditar que alguém realmente falou tanta merda e ainda se diz feminista. E pior, tem uma galera (feminista ou não) apoiando.

"As feministas culpam os homens por tudo."

Não. Apenas não.

"As mulheres de hoje não são tão fortes quanto as dos anos 20 e 30."

Hoje tem mais participação negra, acho que isso já faz o movimento ser mais forte.

"Os homens heterossexuais jamais serão capazes da arte da análise emocional."

WHAT THE FUCK?????? Essa é a velha história de que homens são racionais e mulheres são sensíveis e emotivas. Foda aguentar isso depois de tanta feminista lutando para livrar as mulheres dessa ideia reducionista de psicologia, pensamento, visão de mundo.

"Os homens não precisam casar para fazer sexo."

As mulheres precisam????

"Para os homens é frustrante porque, se o trabalho que eles fazem pode também ser feito por uma mulher, no que consiste sua masculinidade afinal?"

Tadinhos, gente, onde vão usar toda a sua masculinidade?? Nem podem ocupar os melhores cargos nas empresas e ter os melhores salários! 

"O machismo vem do medo do poder da mulher sobre o homem."

O homem fica com medo então estupra. Claro.

"As mulheres que têm sucesso com os homens são aquelas que mantém uma certa qualidade maternal e entendem as fraquezas dos homens. E têm pena deles por isso. Elas tratam homens com humor e conseguem entender as necessidades dos homens e nutri-los de certa forma."

Pronto, agora ela quer que as mulheres sejam sempre mãezinhas de todos os homens ao redor delas. Eles são coitadinhos, frágeis, que precisam de colinho, que precisam que a gente deixe eles terem seus empregos e salários altos pra que eles não fiquem tristinhos e com dorzinha na masculinidade.

"Gloria Steinem é responsável por isso. Ela e seus problemas psicológicos."

Culpou uma mulher por toda a situação atual capitalista de trabalho. E ainda chamou ela de louca. Parabéns, você acaba de cagar em cima da cabeça de todas as mulheres.

"Como você vai expor seu corpo para protestar contra a indústria do sexo se o que você está fazendo é gerar excitação sexual?"

Camille, tu não entendeu nada. Volte 10 casas. 

"Se você é uma mulher livre, você tem que aceitar que, toda vez que se vestir de modo convidativo, está enviando uma mensagem."

Uma das principais lutas feministas é exatamente sobre isso: poder usar a roupa que quiser sem se preocupar com essa "mensagem". Isso é burrice mesmo, é não entender de relação, de cultura, de sociedade.

"Temos que tentar parar de glamurizar a beleza da mulher madura."

Onde isso está sendo feito? Nas pequenas tentativas de mostrar diversidade de beleza? Nos poucos ensaios fotográficos e obras de arte que tentam mostrar outros corpos e valorizar todos os tipos de pessoa? Valorizar diversas belezas é ruim? Sério?

A entrevista é o maior chorume já publicado nos últimos tempos. Olha que eu leio muita merda. A pessoa consegue ser gordofóbica, transfóbica (ao mesmo tempo que se diz transgênero), machista, classista, analfabeta cultural.

A maior "tese" dela é que a mulher deve se preocupar em ser mãe e que o maior erro do feminismo foi ter abdicado da maternidade. Camille, maternidade é uma escolha e não uma obrigação. O papel de uma mulher não se limita a procriação. Vai ter mulher no mercado de trabalho sim, vai ter mulher ocupando cargos "de homens" e, ainda por cima, vai ter mulher tendo filho a hora que quiser, ou não tendo filho nunca também, porque ela que decide.

Outro grande erro é insistir que o feminismo atual (ai, deusa) se reduz a ódio aos homens. Vou tentar esclarecer (mais uma vez) uma coisa: o chamado ódio aos homens, ou a misandria, é uma tática de luta, não é o objetivo do feminismo, não é o que define e limita o feminismo. É uma forma de se defender, de se sentir protegida. Só isso, não precisa se assustar, ninguém vai castrar homem em praça pública.

Sinto muito, Camille, mas as feminista não vão engolir isso. Te encole na tua caverna, finge que tu está nos anos 20, te esconde e para de falar merda. O mundo vai continuar, as feministas vão continuar.


quarta-feira, 8 de abril de 2015

um teto todo meu

Esse texto está bordado de doçura, leveza, aprendizado e coragem. Esse texto foi escrito a muitas mãos, como só podia ser. E esse texto é endereçado a todas as mulheres que precisam de parcerias para dar o primeiro passo. Para todas aquelas que jamais se sentiram capazes de viver consigo. Para todas as que viveram a vida dos outros. Para aquelas que estão em relacionamentos abusivos e de controle, com parceirxs ou com familiares. Para todas as que se empoderam. Para todas as que se invisibilizaram. Para todas as que deram a volta e se descobriram. Para todas que se amam muito, acima de tudo. Para todas as mulheres que constroem seus tetos, de inúmeras formas. Para todas as mulheres. Porque todas elas nos ensinam a ser uma parte importante no todo.

Temos a sorte do encontro. Temos a sorte de conhecer essas quatro mulheres (e agora todxs xs leitorxs têm a sorte de suas palavras). Elas escreveram sobre a relação consigo mesmas, morando sozinhas e erguendo seus tetos.  Os relatos são lindos, garantia de amor e empoderamento até o fim da última palavra. Além disso, os relatos são um convite e um apoio. Mulher, te ama e te liberta, junto com a gente. 

Nati, Lu, Rafa e Paola, mulheres maravilhosas em um teto todo seu


UM TETO TODO DA NATI

"Decidi morar sozinha porque precisava de espaço. Espaço físico, mental, temporal, psicológico e emocional. Tive sorte porque a reação das pessoas, em geral, por eu ter um relacionamento estável de dois anos, era perguntar se eu ia morar sozinha ou com o companheiro. Eu perdi as contas das vezes que respondi isso com certo receio do olhar, do julgamento e do comentário machista que potencialmente viria a seguir. Mas foi incrível. De mães solteiras, mulheres casadas há décadas, mulheres divorciadas, marcadas pelo machismo de ex-companheiros escrotos, enfim, de uma variedade bem distinta de escolhas e destinos, de todas elas eu recebi um olhar incentivador, quando não um "aproveita muito" ou "eu gostaria de ter podido curtir essa fase da vida". Bem, não sei se precisa ser encarada como uma fase de quem necessariamente quer um dia vir a casar. Mas dá uma dor no coração pensar que tantas mulheres do meu cotidiano gostariam de ter tido essa "etapa", essa chance, essa vivência, e não tiveram. Que sorte nós temos de ter mulheres com as quais olhar olho no olho e poder ver a cumplicidade, a compreensão e solidariedade de abrir o coração para uma escolha que não foi a delas, mas poderia ter sido, se elas tivessem quem as olhasse assim. Por isso que morar sozinha, pra mim, significa, paradoxalmente, saber que não estou só. Que posso querer estar só. Que posso estar só. Mas ao mesmo tempo estou com todas as gurias e mulheres que resolveram construir seu próprio espaço. 


Sofrendo, peleando, gastando, trabalhando muito, mas acima de tudo curtindo ser uma, e apenas uma, e uma que se basta, e que isso importa mais do que qualquer outra coisa. Cada pintura de móvel, cada prego na parede, cada noite aproveitando a minha companhia demonstram a certeza de que não importa o que digam sobre ser mulher: nós podemos criar o nosso dia a dia cheio de luta e amor - amor das nossas irmãs, dos nossos companheiros e companheiras, da nossa família, mas acima de tudo, o amor que é o único que não pode faltar, que é o nosso por nós mesmas. Não tenho dúvida de que esse espaço pro nosso próprio amor é um espaço que só existe graças ao feminismo e ao olhar que muitas de nós receberam, dizendo: vai, não fica com medo, te ama e te constrói. Por isso resolvi gravar parte disso na parede com uma amiga que me ajudou (muito!) a me construir. Morar sozinha, com certeza, empodera as mina."

 


UM TETO TODO DA RAFAELA

"Morar sozinha era algo que eu desejava há muito tempo, mas, por falta de coragem e de dinheiro, fui adiando esse sonho. Eu decidi sair da casa dos meus pais no final do ano passado para dividir um apartamento com uma amiga, mas só me encontrei de fato e achei meu lugar no mundo quando tomei a decisão de ter um canto só meu, o que aconteceu uns três meses depois de ter encarado a primeira mudança, que hoje vejo como uma ponte importante nesse processo todo de sair da casa dos pais não para casar, mas para viver sozinha (ou com duas gatas). 


E foi quando me vi neste momento tão desejado de solidão que a vida e as minhas relações comigo, com as outras pessoas e com o mundo passaram a fazer muito mais sentido e se tornaram mais leves, mais completas, mais felizes. Foi quando eu percebi que dava conta de cozinhar, arrumar a minha casa (ou não arrumar, porque sempre tenho essa escolha), cuidar de duas gatas e pagar minhas contas sem depender de ninguém. Foi quando vi que eu me bastava, que essa existência ímpar é o que eu precisava para, enfim, me sentir inteira! Para mim, morar e estar só significa uma escolha, significa abrir mão do conforto da casa dos pais para voar mais alto, para ter mais liberdade, e é a minha solidão que me faz uma mulher mais livre. Livre para me encontrar e me perder em mim; livre para escolher cada detalhe, cada cor, cada perfume, casa som do meu cantinho; livre para encarar meus medos de frente, sem máscaras, desnuda; livre para andar nua pela casa, ouvindo minhas músicas preferidas ou o meu silêncio; livre para abrir este universo particular para quem eu quiser; livre para desbravar o meu mundo na minha melhor companhia: eu!"



UM TETO TODO DA PAOLA

"Poucas coisas versam tão bem sobre mim como a minha casa. Ou melhor, acho que nada nesse mundo versa tão bem sobre mim como a minha casa. Moro sozinha-sozinha desde o final de setembro de 2013, quando me separei de um relacionamento de 8 anos. Saí da casa da mãe para começar a morar junto com o meu ex em SP. Voltamos pra cá e seguimos morando juntos. Até a separação lá se foram 4 anos de dividir a casa, a cama, as contas. Morei ainda um tempo no apê que compramos juntos e desde fevereiro de 2014 moro aqui neste apê. O primeiro lugar na minha vida que realmente chamo de meu cantinho. Tudo o que eu tenho aqui foi super escolhido e é cheio de significados, mas meu cantinho preferido é a parede entre a cozinha e a sala, que tá pintada de preto e onde meus amigos deixam mil recadinho s fofos pra mim. Além dos recadinhos, escolhi esse lugar como favorito por estar entre a cozinha e a sala. Quem me conhece sabe que eu amo receber as pessoas aqui. Adoro cozinhar e beber com os amigos. 


Então esse lugar representa muito. O que foi bem fácil de aprender a morar sozinha foi a liberdade de trazer quem eu quiser pra cá, quando quiser, sem ter que me preocupar se vou atrapalhar alguém ou não. Simplesmente sair de uma aula na faculdade e perguntar pras colegas queridas: vamos almoçar lá em casa? Ou, depois de uma tarde na redenção, perguntar pro pessoal: vamos fazer uma pizza e tomar vinho lá em casa? Assim, sem ter planejado nada mesmo, duma hora pra outra. Adoro também que tenho vários amigos que me ligam do nada e perguntam se podem dar uma passadinha. Adoro isso. Adoro casa cheia. Hoje posso dizer que também adoro estar sozinha aqui, tomando chá, chimarrão, vinho, lendo, ouvindo música ou vendo alguma série na TV. HOJE. Logo que comecei a morar comigo mesma me sentia muito sozinha nesses momentos. Parecia que não era uma opção minha estar ali, sem ninguém mais além de mim. Eu amo cozinhar, e, às vezes, ligava pra um milhão de pessoas pra não ter que cozinhar só pra mim. Tem uma frase do Mia Couto que diz mais ou menos que cozinhar pra alguém é uma forma de amar o outro. Hoje eu entendo que cozinhar pra mim mesma algo que eu goste muito é uma forma de eu demonstrar meu amor por mim mesma, de me mimar, de me dar um momento saboroso. Por que não? Umas semanas atrás uma amiga me convidou pra sair numa sexta e eu disse que já tinha planos: ficar sozinha, comer risoto de damasco, ligar minhas luzinhas, tomar vinho e rever as duas primeiras temporadas de girls e sex and the city. Minha amiga riu. Eu ri também, meio que pra não entrar numa discussão. Tinha sido uma semana super cansativa e estressante e tudo que eu queria era ficar tranquila, cozinhar em silencio e esse era realmente um compromisso que eu tinha estabelecido comigo mesma."



UM TETO TODO DA LUANA

"Morar sozinha foi a maior experiência de auto conhecimento da minha vida. Depois de anos morando aqui e ali, não sentia que lugar nenhum era minha casa, mesmo após voltar de uma longa viagem, pensei: sabe aquela sensação de chegar e se atirar na tua cama, tomar banho no teu seu chuveiro? Não tinha isso em nenhum lugar.


Até realmente achar e me mudar para o apartamento demorou bastante e foram muitos papéis, assinaturas e desconfianças de que o mercado imobiliário é uma quadrilha de pilantras dignas de caricatura. Essa delonga foi, agora vejo, até boa, pois com bastante pesquisa e referencias (noites e noites dedicadas ao pinterest, aquele lindo), consegui ir moldando uma visão da casa que eu queria: muitas luzinhas, cheiro bom, flores e uma vitrola para passar o tempo. 


Estou há exatamente um ano aqui. E demorou quase um ano para a casa ficar como que gostaria, mas continuo achando coisas pra mudar toda semana. Saí de um emprego que me tomava tempo demais e não compensava para me dedicar mais à casa, sem nenhum pudor. Nos primeiros meses, não me sentia bem ali, não ficava em casa, não cuidava, passei meses sem internet e continuava com a sensação de que nada era meu ali, tudo isso combinado com uma falta de gostar de mim mesma gigantesca também. mas assim que a casa ganhou novos membros, os gêmeos, francisco e nicolas, percebi que aquele era o lugar mais meu do mundo. A cor deles combina com o sofá, com a cama, com as luzes e até com as flores que eles insistem em comer. A fofura felina me ganhou tanto que passei a cuidar muito mais, a entender que a casa que eu queria dependia de mim e do meu humor também. Com o tempo, veio a vitrola, a bicicleta, uma floreira linda e uma paz muito grande em estar ali, que só passando uma tarde chuvosa lendo, sentindo meu tempo que percebi que tinha meu lugar no mundo. Dos percalços, ainda tenho muito a aprender: fazer comida suficiente para uma pessoa é uma arte que ainda preciso dominar, pois a vontade de testar receitas é maior que a vontade de ficar olhando para o que sobrou durante uma semana. Saber seu tempo, suas vontades, prioridades, tudo envolve um se conhecer que só morando sozinha se aprender.


Tempos atrás, aconteceu uma coisa muito ruim, apesar de ter porteiro e de as pessoas sempre precisarem de autorização, deixaram uma pessoa desconhecida subir e esta ficou esmurrando a minha porta à noite, me deixando apavorada e fazendo até meus gatos fofuras rosnarem. Lembrei de todas as pessoas que por ventura poderiam estar ali, todas as que sabem que eu sou uma mulher que mora sozinha e juro que foram os quinze minutos mais apavorantes da minha vida. Tudo acabou certo, mas admito que passei a cuidar muito de quem vai me visitar e continuo com medo, sempre que o interfone toca e não estou esperando. Uma tranca a mais na porta, uma primeira insegurança. Também ainda confiro mil vezes se desliguei o gás, se por acaso tranquei a porta todas as vezes que ela pode ser trancada. Respondo muito sobre como consigo ser mulher e morar sozinha, se não tenho medo, mas o que mais escuto, de outras mulheres, é que elas não sabem como consigo, como não me sinto sozinha, que morar sozinha é bom “porque homem não ajuda em nada na casa”, combinado com um misto de pena : “mas é tão ruim ter que cozinhar só pra ti”. Agradar só a mim, não tem cara de dó nenhuma que acabe com esse prazer.


Ainda não sei martelar ou trocar lâmpada, mas já percebi que a cama arrumada faz muita diferença, que as plantinhas precisam de carinho e atenção e que meu medo de aranhas só existia quando não haviam dois predadores enlouquecidos atrás de uma. Falando nisso, também virei expert na salvação de lagartixas. Hoje tenho muita vontade da minha casa, de mim e dos gatos e é um grande orgulho ter feito um lugar no mundo tão fofo e aconchegante para mim, o francisco, o nicolas."



NUM TETO CABEM TANTAS

Quando estava no meio do mestrado em 2012 e não conseguia escrever, minha orientadora me emprestou "Um teto todo seu", da Virgínia Woolf. O que era para impulsionar a escrita de uma dissertação, ganhou a força de uma mudança radical. Terminei um relacionamento de três anos e logo engatei um outro - um relacionamento com minha própria potência de existir, sozinha, em um apartamento de 45m, todinho capaz de ser feito pra mim. Em janeiro desse ano pude conhecer a beleza do trabalho da artista Daniela Mattos, no MAC - Niterói, intitulado "Um teto todo meu", o que me remontou à experiência dos três anos passados, entre tempestades e alegrias nos mesmos 45m. O trabalho de Daniela lida com as relações entre corpo, escrita e imagem. Três conceitos sobre os quais me coloco a pensar todas as vezes que abro e fecho as portas de minha casa, me olho no espelho ou converso com mulheres que fazem parte da minha vida - no blog, no trabalho, na rua. 

Falta pouco para que meu relacionamento sério complete seus três jovens anos. E para comemorar um processo longo de tantas transformações da mulher que fui descobrindo ser e fabricando em mim a mulher que me torno a cada dia, tive a chance de compartilhar essa experiência, ouvir, ler, sonhar junto e conhecer  essas quatro mulheres maravilhosas - que, assim como eu, estão em diferentes momentos nesse teto todo nosso. Elas me ensinaram, nos últimos dias, que um teto todo seu é mais que uma casa. Mas é a gente na casa e a casa na gente. É mais que morar sozinha, porque é habitar em si mesma. E que cada pequena escolha remonta a tudo o que se pode ser como mulher. O mais importante agora, no meu teto, é poder construi-lo escolhendo minhas parcerias e tornando ele, também, um espaço de encontro e de poder. 

 


terça-feira, 7 de abril de 2015

mulher é bicho ruim

Eu sou uma pessoa má. Sou errada sempre. Cuidar de mim é egoísmo, meu papel é cuidar dos outros. Cuidar dos outros para me redimir por ser tão má. Má e suja. Todos os relacionamentos que dão errado aconteceram assim porque eu sou errada. Os problemas da minha família cabem a mim resolver. Eu que devo sofrer, resolver todos os problemas, abdicar de mim mesma. Culpa é a minha punição eterna por ser uma pessoa ruim, torta, irracional, burra, provocadora. A culpa está colada em mim desde que eu nasci e dela não consigo me livrar, afinal, sou errada mesmo.



Terminou com um namorado que nunca te fez bem, te tratou mal o tempo todo? Ai, foi tudo culpa minha, eu que não soube entender ele e estraguei mais uma relação.

Gritou com o namorado, aí ele te chamou de louca, e tu ficou mais braba ainda e quebrou um prato? Ai, que horror, eu sou louca mesmo, que descontrolada. Tudo culpa minha.

O namorado ficou doente depois de jogar futebol na chuva? Eu não devia ter deixado ele ir, tudo culpa minha!

Tu e o marido estão com uma dívida alta no cartão de crédito? Culpa minha, não devia ter comprado nada, sou muito consumista mesmo.

O namorado disse que tu engordou? Engordei mesmo, que gulosa, que horror, ele tem todo direito de me achar horrível!

O namorado te traiu? Tudo culpa minha, não dei a atenção necessária, recusei sexo algumas vezes e ainda nem sei cozinhar direito!

Tu quis conversar sobre problemas na relação e o namorado não deu bola e achou uma chatice e disse que não tem nada de errado no relacionamento? Realmente, eu invento coisas, se tem alguma coisa errada é culpa dessa minha cabeça louca que procura erro em tudo.

Saiu pra dançar com as amigas, te divertiu, chegou bêbada em casa e o marido te chamou de escandalosa e descontrolada? Eu sou mesmo, que absurdo sair e beber tanto com as minhas amigas, ele tem mais é que me chamar de vadia mesmo. Tudo culpa minha!

Não tem nada pra comer em casa? Claro, eu fui uma desorganizada, não fui no supermercado e agora meu marido tá com fome, tadinho!

O namorado disse para os pais dele que vocês não vão passar o fim de semana na casa deles? Tudo culpa minha, eu to influenciando ele a não dar mais atenção aos próprios pais.

Tua sogra te tratou mal, tu reclamou com o namorado e ele ficou brabo porque tu falou mal da mãe dele? Ele tem razão, não tenho direito de falar da mãe dele, mesmo que ela me humilhe todos os dias. Eu devo ter feito alguma coisa pra ela me tratar mal, é culpa minha.

O teu filho bateu num colega na escola? Tudo culpa minha, eu que não eduquei ele direito.



Mulher, nada disso é culpa tua. 

Por experiência própria e troca de histórias entre amigas, vejo todo dia uma mulher se colocando culpa e pesos que não são dela. Muitas mulheres têm essa característica, especialmente dentro de um relacionamento com um homem. Nós assumimos papel de namorada, mãe, amiga, brinquedo sexual, cozinheira, enfermeira, terapeuta. E temos que ser super bem sucedidas em todos eles! Se alguma coisa der errado só pode ser culpa nossa, já que teríamos que estar tomando conta de tudo. Controlando tudo sem ser controladora, sabendo de tudo sem ser muito sabida.



Para cada cara que faz uma cagada, tem uma mulher pra levar a culpa por ele. As mulheres são culpadas pelos próprios estupros, imagina que não seriam culpadas pela traição do marido, ou por qualquer instabilidade que possa ocorrer na vida do pobre ominho ao lado dela! O cara é um escroto? A culpa não é tua! Ele te traiu? A culpa não é tua! Ele foi demitido? A culpa não é tua! Ele tem ciúmes? A culpa não é tua!

Tenho uma pessoa bem próxima de mim (e várias outras conhecidas) que passou a vida casada com um cara que fazia muito mal pra ela, um cara doente, alcoólatra. Sabe o que fez ela passar a vida com ele? Culpa e punição. Ela chegou a se convencer que esse era o papel dela na vida: ajudar esse cara, apoiar ele e esquecer de si mesma. Claro, o que mais poderia uma mulher fazer do que tomar conta de um homem. E o cara? Ah, esses escrotos adoram se vitimar (os mesmos que chamam as feministas de vitimistas). Esses são papéis muito bem elaborados por uma ética cristã-patriarcal: a mulher é errada, culpada e deve ser punida e carregar o carma de apoiar o homem em todas as suas decisões; o homem só erra quando a mulher não o apoia do jeito certo. Que confortável, hein, ômi?



O jeito de amar da mulher é errado. A atenção que ela quer do namorado é errada. O jeito de falar e se vestir é errado. Ela tem culpa até quando não faz nada, porque, na verdade, tudo tem uma influência maléfica dela. Se a mulher pensar em si mesma por um segundinho, os desastres são catastróficos! São poucos os homens que vivem sem culpar uma mulher. E isso não é assim tão racional, tá tudo no meio desse fel chamado de sociedade machista-patriarcal-cristã-capitalista. 
No meio disso tem muita coisa, muitas práticas de punição, culpa, vitimização. 

Tem uma situação que parece se repetir e que eu gostaria de um dia realizar uma pesquisa séria e ter dados que comprovem essa teoria: são poucos os homens que realmente tomam a iniciativa de terminar um relacionamento. Eles agem diferente: eles ficam distantes, criam situações de briga, provocam, fazem um joguinho de ciúme. Tudo isso pra mulher pirar e brigar e ele dizer que não tá acontecendo nada. Aí depois de inúmeras brigas e ele chamar a mulher de louca e neurótica 250 vezes, a mulher cansa e termina. Aha! A mulher que termina, ela é a culpada pelo término do relacionamento! Agora ele pode ampliar o seu papel de coitadinho, fazer carinha de doente e deixar a mulher se esmigalhando de pena e dor, mais do que ela já estava.

Mulher, joga fora essa culpa. Primeiro passo de empoderamento: te orgulha de ti e das tuas decisões, para além do carinha que possa estar ou não na tua vida. Cuida de ti, olha pra ti, presta atenção em ti. Tu merece o teu próprio cuidado, esse que tu tanto dedica aos outros. Tu merece um tempo contigo mesma, esse tempo que tu usa pra rolar na cama de tanta culpa e ansiedade. As tuas decisões são tuas e julgá-las como certas ou erradas não é nada produtivo. A gente toma as decisões que o momento nos proporciona. Julgar um comportamento passado com a clareza do presente é injusto contigo mesma. Esses omis escrotos vão continuar te culpando, não espera que eles mudem pra tu mudar. Eles que se fodam. Tu é merecedora, tu é incrível, tu é demais e tu te basta. Tu não é culpada de nada, nem do fato de te sentir culpa, tu não deve te punir. Ri dos teus erros e aprende com eles pensando no teu melhor e não no dos outros.



(este texto é especificamente sobre relacionamentos heterossexuais e os papéis que muitas mulheres acabam tomando para si. Não pretendemos com isso ignorar outros tantos tipos de relacionamentos que existem, apenas fazer um recorte).

segunda-feira, 6 de abril de 2015

o feminismo é para todas!

Dentro do feminismo ainda temos que lutar contra preconceitos. Tem feminista que não aceita mulher trans no movimento, porque ela não é mulher "de verdade". Tem feminista que acha que as pautas da mulher negra e da mulher branca são as mesmas. Tem muita feminista preconceituosa, expondo minas, silenciando quem deveria ser irmã de luta. Como um movimento assim pode libertar (todas) as mulheres?



Escrevo aqui como feminista branca de classe média. Ser mulher me faz sofrer opressão e preconceito, mas eu também tenho muitos privilégios. Eu não posso escrever aqui e sair falando sobre feminismo pra todo mundo se eu mesma não reconhecer aquilo que me diferencia de várias mulheres, aquilo que me coloca em uma posição privilegiada. Não posso achar que o meu sofrimento de mulher é o mesmo para todas. O gênero nos aproxima, mulher negra e eu, mas os estereótipos que me oprimem não são os mesmos que os dela. Enquanto o feminismo branco estava lutando pelo direito ao voto, as mulheres negras estavam lutando para serem reconhecidas como gente. Enquanto a patroa estava reclamando da opressão do marido, a empregada negra estava lavando as roupas da família patriarcal, branca, de classe média. Enquanto as mulheres brancas lutam para não serem vistas como frágeis, as mulheres negras não querem ser vistas como pedaços de carne da "cor do pecado". A questão não é criar uma hierarquia de sofrimentos, mas não apagar as questões de raça no meio da discussão de gênero.

Gênero, sexualidade, classe social, raça, tudo isso está entrelaçado. Toda vez que o feminismo toma qualquer atitude racista, ele perde parte da sua força de reivindicação. O feminismo existe pra quem? Que mulher é essa que é defendida? A branca, classe média, com curso superior? Essas divisões não podem existir em um movimento que luta por igualdade.



Enquanto apontamos o privilégio alheio é difícil nos voltarmos para o nosso próprio. Mas mulheres brancas NUNCA podem deslegitimar o sofrimento de uma mulher negra. Eu não sei o que é ser mulher negra, posso ler sobre, posso ouvir, posso conversar, mas ainda assim não vou poder opinar, pois sobre isso eu não tenho legitimação. Se toda vez que uma mulher negra lançar uma pauta no feminismo e apontar racismo eu discordar dela, quer dizer que eu sou preconceituosa, que eu não enxergo para além dos meus próprios problemas. Junto com "iuzomi", também tem "iazbranca", "iazrica". Toda vez que uma mulher branca sofre por receber um salário mais baixo que um homem branco, uma mulher negra sofre por nem conseguir o mesmo emprego que a branca. O feminismo negro é a minoria dentro da minoria.

Não deveria ter que existir tipos de feminismo, mas é só ler um pouco que a gente vê que atualmente as mulheres negras estão finalmente sendo um pouquinho ouvidas dentro da luta feminista, por isso ainda a presença de binarismo e lutas que às vezes parecem opostas.



Como uma feminista branca como eu pode fazer para não silenciar uma mulher negra? Ficar quietinha e ouvir já é uma boa. Assumir meus privilégios e pensar sobre onde eles me levam e o que eles me permitem fazer também ajuda. Dar espaço no meu blog para uma mulher negra escrever sobre suas opressões diárias. Pensar sobre todas as muitas mulheres que existem por aí e sobre os diferentes graus de patriarcado que as atingem.

O filme "Histórias Cruzadas" nos faz pensar um pouco sobre a opressão da mulher branca diante da negra. No filme, vemos claramente a posição que cada uma ocupa na sociedade e os sofrimentos que vêm junto com classe e gênero. O racismo da mulher branca é fruto do patriarcado. A mulher dona da Casa Grande sofre? Sofre, sim. Mas a negra da senzala tem um outro sofrimento que a branca nem conhece. 



O feminismo é para todas. TODAS. Branca, negra, índia, gorda, magra, rica, pobre, solteira, casada, mãe, dona de casa, empregada, funkeira, prostituta, moradora de rua, imigrante, empresária, mochileira, católica, hippie. 

Mulher, volte o olhar pra ti e reconheça teus próprios privilégios. Não deslegitima uma dor que tu não conhece. Não aja a partir de princípios patriarcais. Peça desculpa. Reconheça teu racismo. Não silencia as outras mulheres. Sororidade acima de tudo!


Mais textos para pensar sobre o assunto e conhecer a história do feminismo negro: