quarta-feira, 29 de abril de 2015

wild

"Wild" (Livre) é um filme lançado no fim do ano passado, dirigido por Jean-Marc Vallée e se trata da história de uma mulher que resolve fazer uma trilha pela PCT (Pacific Crest Trail), uma caminha da de 4.260 km. Pra quem já viu "Into the wild" (Na natureza selvagem), essa é a história se o Alexander Supertramp fosse uma mulher, e isso muda tudo.

Primeiro porque ela tem que ter um motivo específico e ligado a um homem para decidir fazer algo tão lunático assim. O Alexander Supertramp é um anarquista, utópico, cheio de sonhos de como viver a vida. Mas a Cheryl é uma mulher se recuperando de um relacionamento. Pelo menos é isso que o omizinho aqui embaixo pensa. 


Homem nenhum fazendo uma trilha pensa que vai ser estuprado a cada outro homem que encontra. Com Cheryl a gente morre de medo toda vez que isso acontece. A gente tem certeza que um dos caras pelo menos vai estuprar, bater, roubar. O filme é extremamente tenso por isso, o espectador sofre pela suposta fragilidade de uma mulher pequena e magrinha caminhando sozinha e encontrando homens grandes e assustadores. Esse clima fica bem claro quando sabemos que a Cheryl leva com ela um apito para tentar garantir que alguém irá ouvir se ela foi atacada.


Cheryl realmente encontra muitos homens. Todos eles parecem ameaçadores. TODOS. Na verdade, mentira, tem um grupinho de 3 caras que são tão adolescentes que não passam a sensação de medo. Eles só estão lá pra trazer um mimimizinho básico de gurizinho que não sabe nada da vida.



Dizer não e ser estuprada no carro mesmo ou ir até a casa dele e tentar fugir?


Ou usar a mentira básica de que está acompanhada? Quantas mulheres precisam dizer que tem namorado para não serem assediadas?



 Não, esse não estuprou. Só largou uma série de frases machistas durante o jantar.

O fato de Cheryl ser uma mulher é sempre uma questão, em qualquer interação. Por exemplo, quando ela encontra uma outra mulher que imediatamente pensa que Cheryl é vadia/prostituta/fácil ou algo do tipo, que não acredita que ela vai passar o noite no hotel sozinha.



O filme não é linear, o passado de Cheryl é contado aos poucos por flashbacks, muito parecido com o "Into the wild". Cenas com a sua mãe, com seu ex-marido, usando drogas e com os vários caras que ela transava todos os dias, numa fase de vida de autodestruição, são intercaladas com suas aventuras na trilha.


Cheryl estuda na Universidade junto com sua mãe e ambas debatem temas feministas e escritoras revolucionárias. Ela também lê muito, assim como o mencionado Alexander Supertramp. Mas a maioria de seus livros são escritos por mulheres. Cheryl está lá naquela caminhada por causa de mulheres, por mulheres, sendo mulher.




Esse é um filme feito de imagens escuras, interações e poucas frases. O que é significativo não são os desafios do caminho com neve, falta de água, pouca comida, machucados nos pés. O que está em jogo aqui é ser mulher e estar sozinha, "desprotegida", encontrando vários homens dispostos a serem esses tais "protetores". Nem todo homem que Cheryl encontra a trata mal, na verdade vários deles são muito simpáticos. E aí está outro jogo: a própria simpatia deles é uma agressão. Por que eles se oferecem para comprar refrigerante e comida? Por que eles lhe trazem café? Sempre querendo algo em troca, sempre olhando pra ela como uma coitadinha que não irá sobreviver se um homem não ajudá-la.





Ela consegue tantos "favores" que esses 3 carinhas adolescentes do qual falei pensam que ela é privilegiada, pois eles não ganham nada, ninguém os ajuda, mas ela vive ganhando presentinhos de caras na caminhada.



Aqui está perfeitamente explicado e exemplificado o tal "privilégio" feminino que muitos homens clamam existir, e nos chamam de vitimistas quando reclamamos, pois já ganhamos muitas coisas, não temos do que reclamar. Pois é, ela tem muitas histórias de caras "ajudando" ela. Pensem um pouquinho só porque isso acontece com uma mulher andando sozinha por aí e não com três homens jovens?

A única pessoa que não tenta ajudar ela é a única mulher que ela encontra no caminho.


As duas ficam muito felizes de se encontrarem, pois não tem mais nenhuma mulher fazendo essa trilha. Elas são companheiras, dividem uma bebida, conversam e cada uma segue seu caminho. Nenhuma tentando diminuir ou "ajudar" a outra.

Não se pode fazer uma história sobre trilhas e caminhadas com uma mulher, pois a história vai acabar sendo sobre fazer trilhas e caminhadas sendo uma mulher. Ser mulher muda tudo, redefine todas as interações e acrescenta uma tensão que não seria possível se um homem fosse protagonista. Esse filme é uma análise social de gênero concentrada em uma mulher e uma experiência de radicalidade. Esse filme mostra como é diferente um cara caminhando na rua e uma mulher, como todas as relações mudam, como é ser mulher e tentar fazer algo que só é feito majoritariamente por homens. Como é ser mulher e rasgar papéis sociais por onde se passa.

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