terça-feira, 16 de junho de 2015

feminismos, para além das correntes

Se as sociedades se mantêm e vivem, isto é, se os seus poderes não são "absolutamente absolutos", é porque, por trás de todas as aceitações e coerções, mais além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade desse momento em que nada mais se permuta na vida, em que os poderes nada mais podem e no qual, na presença dos patíbulos e das metralhadoras, os homens se insurgem. Foucault (1979)


Desculpem entrar de joelhaço nessa história, mas com a ajuda do Foucault em alguns dos seus textos anárquicos e dureza, a gente pode começar a pensar um pouquinho sobre um conceito que consideramos bastante importante para falar de feminismo: a noção de poder. Numa série de seus últimos textos (As malhas do poder, O olho do poder, É inútil revoltar-se?), Foucault debate a ideia de que poder não é vertical, de uns sobre os outros, daqueles que podem e dos que não podem; dos assujeitados e dominados de um lado; dos dominantes, exploradores, assujeitadores, de outro. Não, não, nada disso amigues.

Poder nesses textos tem a ver com algo que nos interessa muito para pensar sobre os perigos da noção de mulher e de feminismo: de que modos o poder nos produz? Não pela negação, proibição, assujeitamento, dominação, censura, mas pela produtividade das relações em que poderes estão em exercício.

Consideramos muuuuitoooo importante partir do entendimento, em primeiro lugar, de que não são os omi ou o dito cujo patriarcado que submetem as pobres coitadas das mulherezinhas, oprimidas e exploradas pelos seus exploradores malvados. Consideramos também que as mulheres, como corpo social - e não individual, aliás - resistem e exercem poder (ao mesmo tempo) em termos de produtividades e não de assujeitamentos. Mulher não é explorada e ponto. Dominada e ponto. Nascida pra ser odiada (?!). Não é pré requisito ter vagina para ser mulher. Mulher não é um ser biológico. Mulher exerce poder porque nenhum poder é "absolutamente absoluto". Parece óbvio isso? Tem gente por aí confundindo as coisas; tem gente que anda dizendo que o sexo biológico "influencia" a tua "socialização" e te faz ser odiada, caso tu nasça com uma vagina. 




E ganhou TREZE curtidas. Que papo é esse de "no feminismo radical"? Que feminismo é esse, gente? Existe mulher e homem, só, gente nascida no discurso científico pra ser odiada ou odiante? E aí tu diz que esse monte de confusão é "o patriarcado". E que o tal do feminismo radical se fundamenta nisso? Quer dizer então que ser mulher e ser homem é um fato biológico que "influencia" a tua "socialização" no mundo para ser odiada = mulher e explorador = homem? Sério mesmo? Então trans não existe porque as feministas radicais que foram colocadas nesse balaio entorpecente definiram que pessoas trans não existem? Aí, me pergunto: pra que serve esse tal de feminismo radical mesmo, se mulher é quem tem vagina e está condenada a arder pelos sete reinos da tristeza e da dominação? Essas afirmações todas nos parecem simplificar as relações das mulheres com o poder. 


Pra que(m) serve uma verdade binária e vertical, que usa as palavras "opressão", "patriarcado", "dominação" e "exploração" como se fossem simples e tivessem um único registro nos diferentes arranjos que as produziram, em tantas histórias da mulher? Nós nos cansamos de certos enunciados de um certo feminismo radical. Nós, nesta página, nos posicionamos contra qualquer tipo de visão vertical nas relações entre pessoas. Nós consideramos as relações de poder muito mais complexas do que o pode e o não pode; os malvados opressores e os pobres oprimidos. Que tal a gente parar de afundar nessa mistura de velhas palavras-chave pra dizer coisas como essa aqui embaixo?



Não sabemos o que essa pessoa andou lendo; o que orienta essa discussão? O que pode significar, no mundo, um movimento que se considera necessariamente transfóbico? Não sabemos que produtividades são provocadas em se opor binária e verticalmente à construção de identidade de gênero. Identidades de gênero não são delírios pós-modernos, mas construções sociais, na relação do eu com o outro e com todas as possibilidades de arranjos afetivos, sexuais etc. 

Além de não estarmos alinhadas ao feminismo radical, também não achamos nada produtiva essa história de correntes do feminismo. Isso só serve pra criar mais caixinhas fixas e pensamentos prontos. Não pertencemos a nenhuma corrente, feminismo não é se filiar a um partido, ir num clubinho e receber um crachá, não tem essa história de "não aceito homem cis", "não aceito trans", "não aceito pipipi", não existe uma porta que a gente fecha e vive num mundo só com as pessoinhas por nós selecionadas. Pra quem se diz feminista e que não quer ter sua vida determinada por uma série de ideias prontas do que é ser mulher, também não pode sair criando categorias para os outros e se fechando num mundinho "radical".

Tem um pequeno detalhe que faz toda a diferença quando pensamos em movimentos como feminismo: como já dissemos, não existe uma "pessoa" que só oprime e uma outra que é só oprimida. "Opressão" é um jogo, é relação, não é algo preestabelecido e fixo. É um jogo tão móvel que talvez "opressão" nem seja mais a palavra exata pra pensarmos as relações.



Aí a pessoa aí em cima diz que não tem como algo ser fruto de opressão e oprimir ao mesmo tempo. Miga, TEM SIM! É exatamente assim que funciona o mundo!! O feminismo radical parece ver a mulher (ser portador de vagina e útero) como uma criatura coitada, totalmente explorada pelos homens, escrava sem saída. Mas se é assim, o que a gente está fazendo aqui? Se somos mulheres e não temos opção a não ser sermos oprimidas pelo patriarcado, que produtividade teria o feminismo? Ou ainda: o que possibilita a existência mesma do feminismo?


Para pessoas que pedem sororidade (tema importantíssimo para um próximo texto!!), empatia, apoio e todo tipo de solidariedade, o preconceito tá rolando solto:



Olha que grande constatação! A teoria queer é uma ferramenta dos homens para manipular as mulheres e destruir o feminismo! Eu adoro uma teoria da conspiração, mas pelamordadeusa!! Além disso, mulher trans é um cara que gosta de usar saia uma vez por semana. E mais ainda: o macho ganha acesso livre ao feminismo! O feminismo tá parecendo uma sociedade secreta que se esconde num prédio antigo e só alguns tem a senha para acessar todos os andares.

Para além do certo e do errado, do bem e do mal, do binarismo, da fixidez e das correntes, que tal ampliarmos um pouco a discussão sobre as poderosas e resistentes relações? Que tal pensarmos sobre os modos em que se produzem violências, desigualdades, conquistas, direitos, discursos das/sobre as mulheres? 

Mas então, Era uma vez outra mulher, o que é o feminismo?

1. Para de perguntar o que é e pensa sobre as relações que fazem com que o feminismo exista.

2. Pessoas exercem poder e resistem a ele, simultaneamente. Um morador de rua, uma criança, uma homem loiro alto e rico e uma mulher. Qualquer mulher, em variadas relações com hegemonias.

3. Ser mulher envolve construção de identidade de gênero. Então, não há uma única forma de ser mulher. Vamos tomar cuidado, amigXs, ao dizer que uma mulher trans é um homem opressor de saia que vai pra USP pela zoeira. 

4. Feminismo não é sobre odiar homens já que, como uma força de pensamento, é sobre corpo social e não seres individualizados em suas totalidades. 

5. Esse texto não é um delírio pós-moderno. Esse texto não é apenas sobre feminismo, mas sobre um certo modo de pensar. Falar de relações de poder do modo como optamos fazer aqui, não é negar a violência, o preconceito contra identidades de gênero, a dor e o sofrimento relacionados ao machismo. O feminismo é amplo o suficiente para pensarmos em espaços da mulher para além das verticalidades, dos velhos paradoxos e binarismos. Para além das correntes, pensamos que lutar pelos direitos das mulheres tenha mais a ver com ampliar nosso entendimento da complexa relação social em que nos inscrevemos. 

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