segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Jessica Jones: superação de abuso e sororidade

Então que a Marvel fez uma série feminista. Esse é um daqueles pequenos momentos que nos sentimos vencedoras. Uma série baseada em personagens de histórias em quadrinhos, com superpoderes, lutas, vilões, e, incrivelmente, os personagens principais são femininos, quem salva o mundo são mulheres. Lindo né? Para uma pessoa como eu, que já assiste tudo que é coisa de super-herói, que tem um um ladinho (talvez um lado bem grande) meio nerd, isso é realmente uma conquista. 

A Jessica é uma mulher que precisa lidar com o fato de ter sido abusada. Ela tem traumas, por isso ela bebe, ela não consegue se relacionar com mais ninguém, e, ainda, precisa caçar seu abusador. As situações pelas quais ela passa são tão realistas que a gente esquece toda a coisa de superpoderes.

Ela tem medo de andar na rua e ser violentada:


Ela bebe pra esquecer seus problemas:


Ela não consegue esquecer tudo que fez quando estava sendo manipulada por seu abusador:


Kilgrave (quem é nerd como eu vai amar a escolha do David Tennant, o 10º Doutor de Doctor Who), o vilão, é literalmente alguém que consegue controlar as mentes das pessoas. Esse é o poder do cara. O que ele faz com isso? Estupra mulheres e as força a viver com ele, faz com que todos a sua volta o sirvam e depois manda todo mundo se matar. Ele é o super vilão abusivo. Mas, apesar desse superpoder, ele não poderia ser mais realista. Foi difícil escolher as melhores falas do Kilgrave pra colocar aqui, porque tudo que ele fala é típico de homem abusivo.

Ele quer decidir sobre o quanto a Jessica deve beber:


Ele diz que ama a Jessica, que tudo que ele fez foi por amor:



Ele odeia a palavra estupro e nega que foi isso que ele fez com a Jessica (e várias outras), que ainda tem que se prestar a explicar pro cara o que é estupro:


Ele manda Jessica sorrir o tempo todo:


Ele dá opinião sobre as roupas dela:


Ele se faz de coitadinho, como todo homem abusador que adora essa tentativa de virar o jogo:


Ele não se acha perseguidor, nojento, violento, mas romântico:


Além do personagem do Kilgrave ser construído desse jeito cuidadoso, tornando extremamente verossímil, e até um pouco doloroso de assistir, o que mais gostei da série é a quantidade de mulheres. Não são todas umas queridas que se ajudam, tem umas desgraçadas também que só ficam atrapalhando a vida uma da outra. Mas o que é importa aqui é que as ações principais são feitas por mulheres.


Homem aqui só atrapalha e toma decisões erradas. Não tem nenhum super-herói salvador carregando mulheres machucadas no colo. A Jessica passa metade da primeira temporada com a costela quebrada e continua apanhando, correndo, ajudando as amigas, procurando se vingar de Kilgrave. 

Dava pra escrever um texto sobre cada relação da série. Existe um triângulo amoroso só de mulheres. Tem uma relação difícil e também de abuso entre mãe e filha. Tem uma menina que faz um aborto com a ajuda de outras mulheres. Tem muita amizade feminina.



Tem mulher mandando homem calar a boca e se colocar no seu cantinho insignificante:



Jessica Jones é uma série sobre abuso, sobre mulher, sobre sororidade, sobre culpa. E no final não tem nenhum príncipe no cavalo branco pra salvar mulher nenhuma. A Jessica cavalga sozinha e chega lá com a ajuda de outras mulheres.




quarta-feira, 25 de novembro de 2015

pra quem serve o poliamor?

Amar livremente, sem posse, sem hierarquias é uma ideia bem bonita. Bonita demais pra ser levada adiante por homem que quer uma desculpa pra trair a namorada ou chamar ela de louca ciumenta. Temos que rever que poliamor é esse que se prega por aí.



Amor, hierarquia, relacionamento saudável, pra mim, não tem nada a ver com monogamia ou relação livre/poliamor. Tem a ver com trabalho sobre si mesmo, maturidade, ética, respeito, empatia. Tu pode ter uma relação monogâmica por 20 anos ou 20 parceiros diferentes, se tu não tiver respeito, noção de privilégio, desconstrução de paradigmas ou maturidade, tu vai estar envolvido em um relacionamento hierárquico e provavelmente abusivo.

O discursinho do poliamor e do "não rotular relacionamentos" tem me irritado bastante. Principalmente porque vejo isso vindo de homens. Homens jovens, bonitos, brancos e ricos. Ominhos que impõem esse comportamento para as suas parceiras.

A ideia de poliamor não leva em conta nenhum recorte social. O simples fato de uma pessoa ser pobre e trabalhar muito já pode impedir que ela "pratique" esse desprendimento amoroso. Quando a pessoa é trans, negra, pobre, gorda, o poliamor não parece ser uma opção tranquila. Mas aqui vou me concentrar na relação "aberta" heterossexual, aquela que serve, muitas vezes, para legitimar a hierarquia patriarcal.

Claro que existe todo tipo de relação de "poliamor", mas vou falar daquelas que tenho mais conhecimento, que mais vi, que mais me parecem comuns e prejudiciais para a mulher:
1 - ominho fica com a menina
2 - se envolve com ela, começa a integrar na relação vários elementos de namoro
3 - aí percebe que namorar exige certos compromissos
4 - então ele começa a dizer para os amigos que não quer rotular sua relação, mas ele percebe que só não rotular não é o suficiente
5 - enfim ele diz pra menina que ele quer um relacionamento aberto
6 - a menina aceita para não ser chamada de moralista/possessiva
7 - o ominho fica com várias outras meninas
8 - a menina sofre
9 - a menina percebe que não tem porque sofrer e resolve então embarcar nessa ideia e fica com outros caras
10 - o ominho fica com ciúmes que a menina ficou com outros caras e volta atrás na sua decisão de poliamor

- Eu vou me matar sem você!
- Ok... mas não faz muita bagunça!


Existem mil outras opções possíveis para esse cenário que eu descrevi, mas dessa situação descrita aqui que me ocupo agora, pois vejo acontecendo o tempo todo e acho preocupante.

Isso que eu descrevi de 1 a 10 não é poliamor, viu ominho que adora discurso de amor livre? Isso é legitimação de machismo, de lógica patriarcal, de posse do homem sobre o corpo da mulher. Isso é achar que existe um tipo de liberdade para o homem e outro para a mulher. Isso é achar que existe "natureza masculina", aquela que justifica traição e violência.

Hoje ainda é muito difícil para uma mulher pensar nessa possibilidade de relacionamento. A gente sabe que, normalmente, quem acaba se ferindo somos nós. Quem vai ser chamada de vadia somos nós. Quem talvez engravide de um cara qualquer e fique sozinha tendo que fazer aborto clandestino somos nós. Mas, ainda assim, algumas minas têm achado legal essa ideia de não se prender a uma pessoa só, têm tentado ver como é essa tal libertação sexual (que já foi inclusive problematizada e criticada aqui no blog). Aí o problema é um homem que realmente goste de uma mulher livre assim. Por isso acredito ainda que, nessa altura da história, com essa onde conservadora louca dos últimos tempos, o poliamor (pelo menos heterossexual) praticamente não existe.

olha os "maridos" ciumentos inflados por sua natureza de macho!

Então propomos um outro exercício na vida: repensar relações hierárquicas e rever (todos os dias!) nossos privilégios. Qualquer relacionamento pode ser abusivo e não é o número de pessoas com quem tu faz sexo que vai mudar isso. A tua relação contigo mesmo pode ser abusiva também. De repente tenta mudar essa antes, a tua relação contigo, o jeito que tu te vê, o modo que tu percebe teus sentimentos e necessidades. Só uma pessoa livre de si mesmo, livre de seus medos é que pode proporcionar liberdade para os outros.


sexta-feira, 6 de novembro de 2015

não é normal

Ah, é normal caras falarem cantadas na rua

É normal filmes Hollywoodianos serem sexistas

É normal taxista cometer assédio

Ah, mas é normal ouvir piadinhas de colegas de trabalho

É normal meninas jovens terem relacionamentos com homens mais velhos, sempre foi assim

É normal religiosos serem contra o aborto

Mas o que tu esperava do Cunha? É normal um cara como ele ser preconceituoso e machista!

Ah, mulher, não te estressa com isso, é normal



Ouvi essa semana a seguinte frase (de um professor maravilhoso) que destoa de todas essas aí: toda vez que alguém diz que algo é normal, se perde a possibilidade de educação, porque educar é ir contra o normal.

Claro, ouvi muito mais essas coisas horríveis do começo texto. Gente achando que eu me estresso demais, ou, pior ainda, achando que eu sou ingênua por criticar alguma coisa, afinal, o que eu esperava? É normal!

Dizer "é normal" acaba com qualquer possibilidade de questionamento, de desconstrução, de pensamento. Fecha tudo. Enche de categorias prontas e impossíveis de serem quebradas. Em vez de dizer "é normal", devemos nos abrir para as infinitas possibilidades da conversação, do ato de escutar o outro sem preenchê-lo previamente.

Não é normal, em 2015, estarmos lutando por direitos tão básicos da mulher. Não é normal religião e estado quererem controlar o corpo, em especial, feminino. Não é normal trabalhar com gente machista e ter que sorrir diante de violência. Não é normal uma menina de 12 anos ser assediada. Não é normal ter medo de pegar táxi sozinha. Não é normal ter que lutar para a população (rica e branca) não andar armada e pronta pra atirar no primeiro negro, ou primeira mulher (vadia, claro) que passar.

O maior perigo do nosso tempo é a normalização. Sai uma pesquisa que diz que a maioria dos homens acha que a mulher tem que ficar em casa lavando a louça. Isso só prova que a maioria dos homens é escroto, nojento, machista. Mas isso não é normal. O normal não é o que a maioria pensa. O normal é o fechamento das ideias. Dizer que algo é normal é uma violência.

O mesmo vale pro "sempre foi assim". "Sempre foi assim" jamais será um argumento válido. Sempre foi assim? Bah, que merda, vamos mudar então! É normal? Puxa, vamos "desnormalizar"!