quinta-feira, 6 de outubro de 2016

o mais profundo é a pele

Recentemente, eu li um livro que se chama "O Rosto de um Outro", do Kobo Abe. Conta a história de um cara que sofreu um acidente no seu laboratório e ficou com um rosto sem forma. Ele decide fazer uma máscara que imita um rosto para cobrir-se. A partir do momento em que ele começa a usar essa máscara, a sua personalidade muda completamente. Ele percebe que não tem como ter a mesma personalidade que sempre teve com um rosto diferente. Mudar o cabelo, mudar o formato do nariz, mudar a barba, tudo isso significou mudar quem ele era no mundo.

- Mas não há nada de errado em atribuir maior valor ao conteúdo do que à aparência, há?

- Prezar um conteúdo que não tem o respectivo recipiente...? Não confio muito nisso... Creio com firmeza que a alma humana reside na pele, sabe?

- Claro, metaforicamente falando...

- Não tem nada a ver com metáfora... - disse K em tom calmo mas categórico. - A alma humana está na pele... Acredito nisso literalmente. 


Eu mudei muito a minha aparência nos últimos anos. Quem me conheceu há cinco anos, por exemplo, e nunca mais me viu, pode passar reto por mim na rua sem me reconhecer. Isso me incomoda muitas vezes. Mas aí eu me pergunto: se eu mudei tanto o que eu penso, o que eu gosto, o que eu quero, como não mudaria de aparência?

Um dos impactos mais importantes do feminismo na minha vida foi a minha relação com dietas. Eu fazia dieta desde os 12, 13 anos. O que acontece com uma pessoa que fazia dietas loucas há mais de 10 anos, passava muita fome e de repente para com tudo isso? Sim, essa pessoa engorda! E eu engordei muito! Essa foi uma das maiores mudanças na minha aparência. Eu passei de alguém que se matava pra usar uma calça 40, 42, pra alguém categorizada como "plus size". Essa decisão me persegue todos os dias. Eu preciso me lembrar todos os dias porque não faço mais dieta e como não é ruim eu ser gorda. Eu, hoje, não conseguiria ser feminista e magra. 

"mas eu faço dieta porque é melhor pra mim, eu me sinto melhor magra e isso não me faz menos feminista". Hmm... olha, isso é bem problemático. Se tu é feminista tu sabe o que significa uma mulher fazendo dieta pra ficar magra, né?
"mas eu gosto de fazer dieta". Bah, daí tu tem que pensar sobre esses teus gostos. O que tu gosta nisso realmente?

Outra mudança constante na minha vida é o meu cabelo. Eu sempre gostei de cortar e pintar o cabelo, mas nunca tinha me dado conta como eu continuava dentro de uma zona de conforto sobre isso. Até que, ano passado, eu resolvi platinar meu cabelo. Aí eu tive várias cores diferentes e, além disso, um cabelo bem seco, bem sem forma, bem arrepiado, quebrado, e todas essas coisas que as propagandas de shampoo nos dizem que a gente não pode ter.

O cabelo platinado me fez ter outra relação com maquiagem. O que me levou a ter vontade de usar outros tipos de roupas. Usei saia justa e barriga de fora. Isso pra mim foi uma revolução! Quando eu era magra e passava fome, vivia me escondendo. Hoje, feminista e gorda, coloco a barriga pra fora bem feliz e me achando linda. Barriga e pernas cheias de celulite de fora, cabelo colorido e bagunçado, batom roxo. Tudo isso pode parecer bobo, mas foi uma experiência que me redefiniu.

Cabelo platinado e pneus na barriga não são só aparência. (Tu acha, por acaso, que o vestidinho azul de rendinha da Marcela Temer é só aparência, que não significa nada?). Tu não tem uma essência escondida por trás das tuas roupas e cortes de cabelo. Eu fui essencialmente uma pessoa loira platinada com barriga gorda de fora. O jeito que tu arruma ou deixa de arrumar o teu cabelo muda a tua relação com o mundo. E se tu não percebeu isso, de repente é porque tu tem exatamente o mesmo cabelo que sempre teve e acha que isso é o "normal", que o importante é o que "tá por dentro". Miga, o clichê pequeno-príncipe-o-essencial-é-invisível-aos-olhos precisa ser superado!
"mas eu aliso o cabelo e deixo ele comprido porque eu fico melhor assim". Miga, o que significa ficar melhor? Melhor pra quem? Melhor por quê?
"mas eu não gosto de pintar o cabelo, acho isso muito adolescente e superficial". Então acho que tu tá precisando de um cabelo verde nessa cabeça conservadora.

Não satisfeita com o impacto do cabelo loiro, eu resolvi cortar o meu cabelo bem curto. Fui aos poucos, até que cortei bem curtinho, tipo 1 cm de cabelo na cabeça. Foi um choque. Eu me achei horrível por vários dias. Claro, a minha ideia sobre a minha própria beleza ainda tava ligada a ter cabelo comprido, ter franja longa, ter o pescoço gordinho tapado por cabelo. Cabelo curto me deixou exposta demais. Me senti nua andando na rua. Nenhuma roupa ficava boa, nenhuma maquiagem combinava. Ficou mais difícil disfarçar o meu peso, as minhas bochechas, me fazer passar por uma guria "normal". Aí eu pensei: por que mesmo eu to querendo disfarçar alguma coisa? Que soco na cara que eu mesma me dei! E só por causa de um corte de cabelo.


E pra que eu contei essa minha saga de mudancinhas? Porque mudar "por fora" é tudo! Mudar o cabelo é mudar o que tu pensa sobre a vida. Parar de fazer dieta muda a tua relação com as pessoas, muda o que as pessoas pensam de ti, muda a forma como elas te tratam, muda as interações. Ser mulher e cortar o cabelo bem curto te coloca em outro lugar no mundo. Dá uma olhada como ficou a vida de gurias que decidiram parar de se depilar, por exemplo! Tu acha que elas têm os mesmos amigos de sempre, as mesmas ideias? A relação dessas gurias com feminismo, com pensamento, veio junto com a relação com o corpo, e é isso que eu estou defendendo aqui.

Quando alguém me diz que mudou muito o que pensa, mas continua exatamente com a mesma aparência, eu não acredito nessa pessoa. Não existe mudar por dentro. Não existe por dentro. Sim, eu to dizendo aqui que é pra julgar o livro pela capa.

Se eu posso dar algum conselho nessa vida seria esse: muda essa cara que tu carrega há anos! Muda radicalmente teu cabelo, teu peso, tuas roupas. Te desafia a ser diferente de ti mesmo constantemente. Mudar assim significa se conhecer muito também. Tu precisa te conhecer e pensar muito sobre quem tu é pra mudar. E não existe também alcançar o lugar supremo da pessoinha desconstruída. Mudança é um processo constante. Tu não vai "chegar lá". E isso é assustador e empolgante.

A gente precisa explorar outras linhas de vida, outras possibilidades. As tuas relações com colegas de trabalho, família, eleições, feminismo, tudo isso passa pela tua aparência. Usar uma cor de batom diferente não é algo fútil, superficial, mas é algo que pode ser uma possibilidade diferente de vida pra ti. Parar de usar salto pra parecer mais alta pode mudar tudo que tu pensa sobre ti e sobre teus amigos. Ou então, trocar a rasteirinha velha de couro por um saltão pode ser justamente o que tu precisa pra sacudir as tuas certezas! Por que será que o empoderamento no feminismo negro passa por questões como usar o cabelo natural? É só aparência? É só futilidade? 

E quando eu digo pra mudar, é pra mudar mesmo! Mudar pra ti e pro mundo! Não adianta mudar para se encaixar mais ainda num padrão de normalidade de existência. Te coloca em risco, abre mão dos teus confortos, te destrói e reconstrói e destrói de novo. E não espera um fim nisso tudo. E para de dizer que o importante é o que tá por dentro. Mudar radicalmente o que tu é pra ti mesma é te colocar no mundo, é aparecer, é parar de operar com as mesmas velhas, cansadas, desgastadas, mofadas, pálidas linhas de "normalidade" de sempre. 

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

em defesa da dúvida: prostituição, apropriação cultural e mil coisas mais

Mês que vem vão fechar dois anos que eu e a Raquel temos esse blog. Publicamos 98 textos contando com esse. Nossa página no Facebook tem em torno de 8 mil curtidas (pode não parecer nada, mas pra gente é um número absurdo). Já demos várias palestras, cursos e oficinas sobre feminismo. Brigamos com muita gente, desfizemos amizades. Mas conhecemos muita gente legal, muita mulher maravilhosa. Nosso feminismo é jovem. Não tivemos ninguém que nos falasse de feminismo antes dessa recente onda de popularidade. Fazemos parte dessa massa de "feministas de Internet", que sabem muito bem que o mundo virtual extrapola barreiras, e que essa separação não faz mais sentido hoje em dia. 

Dei todo esse contexto pra dizer uma coisa: eu vivo em dúvida, vivo me sentindo culpada quando não sei me posicionar sobre algum assunto feminista, vivo achando que vai chegar aquele dia em que eu vou saber tudo de feminismo, vou ser aquela feminista maravilhosa, iluminada, lacradora, que ganha 3 mil likes pra cada frase que escreve no Face, que sabe tudo, tem respostas pra tudo, sabe qual o "lado certo" do feminismo e passa a vida "dando nos dedos" dos outros com grandes frases de efeito, só apontando os erros dessa massa de feminista-esquerdinha-confusa.

Coitada de mim, esse dia não vai chegar nunca. Mas tenho pensando que não quero que ele chegue mesmo. Estou querendo defender aqui algo que me parece fazer falta no mundo: a chance de não saber as coisas, de se deixar ficar em dúvida e saber que existe muito mais do que ser feminista radical ou liberal.



Comecei a pensar mais seriamente sobre isso nos últimos tempos, quando resolvi tentar me posicionar sobre a questão da prostituição, da "PL Gabriela Leite". Comecei a ler muito sobre o assunto, a seguir no Facebook feministas que são contra e a favor, adicionei prostitutas em todas as redes sociais para tentar me aproximar (um pouco, pelo menos) desse mundo do qual sou absurdamente distante.

Fazem semanas que leio quase todos os dias sobre o assunto. Cada vez eu penso uma coisa. Quando leio um post da Maria Gabriela Saldanha (que eu amo demais), ela me convence de que essa PL só beneficia cafetão, e que prostituição é abuso a serviço do patriarcado. Quando vejo a Clara Averbuck (que adoro também) super amiga da Monique Prada, e leio o que a Monique tem para dizer, penso que essa PL é necessária, e que não posso deixar de lado o que uma prostituta fala sobre a sua própria situação; penso que, de repente, preciso abandonar certos moralismo e aprender de verdade a lidar com a palavra puta.

Estou nessa situação há tempo e não consigo decidir. Queria chegar a uma conclusão para escrever um texto dexxxtruidor e dar a palavra final sobre esse assunto. Mas não vai dar. Quem veio aqui em busca de respostas, só vai ficar mais confuso junto comigo. Talvez eu não consiga chegar a uma conclusão porque ela não existe. Talvez a Maria Gabriela e a Monique Prada estejam igualmente certas, talvez a vida seja cheia de paradoxos como esse e é por isso que os filósofos (e o álcool) estão aí para nos ajudar desde sempre.



Estou aqui defendendo a possibilidade de dúvida, porque o que mais vejo é gente cheia de certeza. A feminista radical tem certeza absoluta de que prostituição é exploração sexual, é mulher como mercadoria. A outra feminista (de outra sei lá qual corrente...) está tão segura que diz até que prostituição é algo empoderador. As duas estão fazendo 30 posts por dia no Facebook, cada uma na sua bolha, com as suas certezas absolutas, só lacrando e ganhando like. Será que é assim tão certo, tão fácil se posicionar sobre um assunto complexo desses?

Outro assunto sobre o qual leio faz muito tempo para tentar escrever é apropriação cultural. Nossa, esse assunto é foda. Primeiro que sinto que eu sou proibida de falar sobre isso por ser branca. Ok, entendo isso, não precisa ninguém vir aqui correndo me explicar o que é "lugar de fala". Mas me parece estranho alguém ser proibido de falar sobre alguma coisa. Claro que não sou a favor daquele senso comum burro do discurso de ódio que diz "essa é a minha opinião e só estou usando a minha liberdade de expressão". Mas será que não existe algo entre discurso de ódio e lugar de fala? Será que não existe algo entre "brancas não podem usar turbantes, loiros não podem fazer dreads" e "cada um faz o que quiser com seu corpo, todas as culturas são misturadas, não é opressão é homenagem"?

Ultimamente tem outra "certeza" rolando por aí: peitos de fora na manifestação. Peito de fora é liberdade, é enfrentamento. Não! Peito de fora é só pra ter foto pra punheteiro, é ser puta exatamente como o que o patriarcado quer de nós! Não! Peito de fora é ter o poder de controlar o próprio corpo, é reivindicar poder sobre algo que é nosso! Não! Peito de fora é privilégio de gurias magras e novinhas que só querem biscoito de esquerdomacho amor livre!

Será que não tem nada além dessas "certezas"?

Eu acho que tem sim. E o que tem no meio dessas certezas são as dúvidas. Dúvidas que podem ser produtivas, que podem nos abrir para o diálogo, que podem nos tirar do pedestal-lacrador-ganhador de likes.



Tenho pouquíssimas certezas e ando gostando de conversar com quem está na mesma situação. Com quem toma uma decisão, toma uma posição, e depois percebe que fez merda, que não era bem isso, e volta a pensar, a se contestar, a se perguntar "por que eu penso como eu penso? Como posso pensar diferente do que eu penso?"

Todos os dias leio um post no Facebook de alguém que sabe o jeito certo de "militar". Normalmente alguém que "milita" desde os 12 anos, que praticamente nasceu dentro de um sindicato ou movimento feminista. Que bom pra ti, companheiro e companheira, por tu ser tão politizado há tantos anos. Mas tu te pergunta sobre as tuas certezas? Ou tu só fica no teu pedestal de militante experiente julgando "os errados"?

Não sei não, mas acho que alguém experiente é quem se pergunta algo novo todos os dias, que percebe que não sabe nada ainda e nunca vai saber. Quero mais gente cheia de dúvida na minha volta, e menos certezas totalitaristas.



Ps - antes que me acusem de "pessoa que não se posiciona", ficar em dúvida e se questionar é bem diferente de ficar em cima do muro, ok? Ficar em cima do muro, pra mim, é tão vazio quanto ter certezas absolutas. Não se trata de não se posicionar e ficar nos muros, mas de quebrar todos eles!

quarta-feira, 6 de julho de 2016

sobre mulheres maravilhosas e biscoitos

O que mais se vê nessa vida são mulheres absurdamente maravilhosas perdendo tempo com machinhos que não valem nada. Isso é muito triste. Eu queria poder dizer pra todas as minhas amigas que tão por aí namorando ou casadas com esquerdomachos: miga, por favor, larga desse omi que tu é foda demais pra ele!



"Meu namorado é muito machista, mas ele tá tentando"
"Meu marido até ajuda em casa"
"Não sei como ensinar meu namorado a não ser tão machista"
"Que eu vou fazer? Casei com um machista, agora tenho que aguentar!"
"Tadinho do meu namorado, é difícil pra ele lidar comigo sendo tão feminista"

Já ouvi todas essas frases de mulheres maravilhosas. Mulheres lindas, inteligentes, incríveis. Todas namorando ou casadas com caras escrotos. Escrotos que tentam, segundo elas. Escrotos que andam com medo do quanto essas mulheres maravilhosas têm pensado sobre feminismo, tadinhos. Esquerdomachos que acharam muito legal a primeira vez que ouviram falar de feminismo porque acharam que isso servia pra mulher ser mais sexualmente "livre", o que os beneficia bastante. Acharam que eles poderiam fazer uso de discursinhos furados de empoderamento para "ajudar" as mulheres a se "libertarem", liberdade essa que ia até onde era conveniente para eles. Mas agora essas mulheres maravilhosas estão ficando feministas "demais", e isso começou a incomodar. Tadinhos.



Mas o que tem me incomodado não são só os esquerdomachos, são os biscoitos que eles recebem das mulheres. O que faz uma mulher maravilhosa diva incrível ficar aplaudindo um omi quando ele faz o mínimo possível? Que coisa é essa que nos ensinaram que a gente fica achando que tem que "pegar leve" com o cara, que tem que entender que não é fácil pra eles "lidar com o feminismo"? O que enfiaram nas nossas cabeças que achamos que devemos proteger esses homens?



exemplo perfeito do biscoito pra macho: o conceito duvivier

Não estou dizendo que devemos odiar os homens, brigar com todos eles e só conviver com mulheres a partir de agora. Mas entre odiar e colocar num pedestal rodeado de biscoitinhos, tem uma distância enorme.

Mulher nenhuma precisa ensinar feminismo para um homem.

Mulher nenhuma tem que aplaudir e reconhecer o "esforço" de um homem quando ele não faz piada machista.

Mulher nenhuma tem que "limitar" seu feminismo pra não "assustar" o namorado.

Mulher nenhuma tem que ter pena de homem por ele ter dificuldade de lidar com o feminismo.

Homem não tem que lidar com o feminismo, não tem que achar o feminismo bom, não tem que posar de feministo. Os homens tão precisando ficar bem quietinhos, pelo menos uma vez na vidinha deles. Nós mesmas escrevemos aqui no blog mais de um texto explicando para os homens como eles poderiam "fazer parte" do feminismo. Acho que a gente tava muito querida. Ou, de repente, hoje eu acordei meio feminazi. Mas acho que essas explicações não deviam nem existir. Sério que além de sofrer abuso todos os dias, ter que lidar com a imposição violenta de padrões de beleza, correr o risco de ser estuprada na rua, e mais milhões de coisas que mulheres passam, a gente ainda tem que ensinar os homens a não serem machistas? HAHAHA! Me poupe, nos poupe, se poupe!



Miga, não pega leve com o esquerdomacho que tá do teu lado. Não "limita" teu feminismo. Não fica com medo de assustar, de ser chamada de histérica, exagerada, feminazi. Não fica pensando formas novas de explicar pro cara que ele PRECISA mudar o jeito de ser, que ele não pode de jeito nenhum ser machista. Não dá um presente pra ele toda vez que ele lavar a louça porque tu pediu. E, principalmente, o que tu tá fazendo com um cara que tu mesma sabe que é machista? Tu não precisa disso, tu é muito foda pra perder teu tempo com isso.

Eu sei que dá o maior medo enfrentar esse mundo machista. A gente pensa que vai ficar sozinha, que vai ser apontada na rua como a louca feminista radical. Mas ser mulher e enfrentar merdas todos os dias já é radical demais pra maioria dos homens. Então vai lá, te joga, chama as migas, se precisar faz migas novas. Se precisar muda todas as pessoas na tua volta, mas não fica presa nesse círculo vicioso esquerdomachista. Não dá mais biscoito pra omi.



segunda-feira, 4 de julho de 2016

Game of Thrones e briga de bar

Eu e mais três amigos fomos ver o episódio final da 6ª temporada de Game of Thrones em um bar, tipo final de campeonato mesmo. A espera era tanta e o bar tão lotado, que tivemos que chegar 4h antes pra conseguir uma mesa próxima da tela. A gente só queria ver o episódio, tomar uns chopes e reinar com o Norte. Mas não foi bem isso o que aconteceu.

 Fogo vivo nos macho tudo.

Antes de começar, a televisão ficou ligada numa outra série da HBO, intitulada "O Negócio". Enquanto a gente conversava, ouvia de uma mesa com umas 15 pessoas, a maioria caras, piadinhas sexuais sobre uma mulher que aparecia nua na Tv - entre os gritos omísticos, exaltações permitidas, urros consonantais de ominhos reunidos e risadinhas tímidas das namoradas, que acompanhavam. 
Toda vez que a atriz aparecia, nua, eles gritavam e faziam Fiu-Fiu. TODA A VEZ. Nível 14 anos de idade, só que sem nenhum respeito. Os gritos escrotos dos ominhos começaram a ocupar o espaço, cada vez mais, a cada mulher que aparecia, a cada piadinha machista. As risadinhas e omisses só aumentavam e reduziam o espaço de todas as MULHERES que estavam no bar - em um nível que dá medo de levantar e ir ao banheiro, sem ouvir risinhos infames e abuso. 

Nudez explícita combina com fogo na geral. 

Foi quando decidi fazer uma intervenção básica, gritando "Esquerdomachos desnecessários" (a Simone de Beauvoir pode me ajudar) porque, além de todas as merdas que falavam, tavam se achando os filhos do Marx no bar. Foi como se tivesse jogado uma bomba de cocô nos caras. Eles não sabiam o que fazer a não ser, omisse. Desde mandar sair do bar até dizer que todo o esculacho anterior, sobre a nudez da atriz, era só uma "piadinha". Um deles teve a coagem de dizer que podia fazer piadinha, porque "minha namorada é feminista". HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA...
Mas eles foram silenciados. Quietinhos. Estranho pra eles mesmo foi que, pela primeira vez na vida, certamente, tiveram que brigar com uma mulher num bar, que decidiu não ficar quieta. Viver na esfera da "brincadeirinha" que passa pelo abuso e constrangimento de várias mulheres não dá. Mesmo. Nem pra ver Game of Thrones. 

Mamacita fala, vagabundo senta. 
Peguei sua opinião, um, dois, pisei! 

Ah, mas tu foi ver Game of Thrones, num bar, série machista, quer o quê? Tava pedindo! Bom, eu não quero abuso. E se ainda houver dúvidas, a Rebeca Puig escreveu um texto maravilhoso, assino embaixo, que tá aqui. 


terça-feira, 28 de junho de 2016

feminismo não é sobre escolha individual

Longe de mim querer dizer o que é e o que não é feminismo. Não existe um feminismo, não existe uma única forma de ser feminista. Não existe nem ser feminista 100% do tempo. A única coisa que existe nessa vida são encontros. E só experienciamos esses encontros se saímos por aí abertos às possibilidades que certas linhas de vida nos oferecem. Portanto, feminismo não é uma coisa só. No entanto, também não é qualquer coisa/pessoa/atitude que é feminista. E isso não é "cagar regra", isso é saber que não podemos cair no "tudo vale", num "democratismo" raso. Feminismo tem que ser mais enfrentador do que isso.

Por que eu estou falando isso? Porque hoje foi mais um dia em que circulou entre várias páginas feministas a ideia de que feminismo é sobre liberdade de escolha, é sobre a mulher querer ser o que ela quiser. 


Desculpa, gente, mas se chamar de barbiezinha em um post sobre feminismo é, no mínimo, estranho. Acredito que o discurso dessa menina é bastante frágil e não dá conta de falar sobre feminismo. Então eu estou dizendo que existe um jeito certo de ser feminista?? Claro que não! Existem vários jeitos de se ocupar um espaço feminista no mundo, e esse não é um espaço fácil, não é toda hora, não é todo mundo. Ser feminista não pode ser tão simples assim.

Feminismo não é pra agradar, não é pra apaziguar, não é pra justificar escolhas. Feminismo não serve pra uma mulher magra dizer que é magra porque ela escolheu. Não é para uma panicat (como disse a menina do post) dizer que ela simplesmente escolheu ser panicat, que ela A-MA ser um objeto de apreciação masculina, A-MA malhar loucamente e fazer a sua vida girar em torno dos seus músculos bem torneados.



Existe uma incoerência muito forte no post que eu trouxe aqui quando ela fala que feminismo é política, ao mesmo tempo em que fala tanto em escolha individual. Já dissemos várias vezes aqui que NÃO EXISTE ESCOLHA TOTALMENTE INDIVIDUAL. Os iludidos que me desculpem, mas tu não escolheu ser magro porque TU gosta de ser magro. Assim como a mulher que não faz dietas e não se depila não escolhei isso porque ELA QUIS. Feminismo (assim como TUDO no mundo) é político, não é libertário-individual. Ou seja, não é sobre a minha amiga poder decidir alisar o cabelo, mas é sobre as implicações desse alisamento, de onde vem e pra onde vai essa atitude, o que ela diz sobre ti, com que (m) ela te conecta.

Feminismo não serve para uma mulher se admitir uma barbiezinha e ainda se dizer feminista. Para que (m) serve um feminismo que segue padrões de comportamento? Para que (m) serve um feminismo que não incomoda?

Com isso não estou dizendo que para ser feminista a mulher não pode se depilar, tem que ser lésbica, gorda, abortar. Isso seria um absurdo, e dizer que falo disso aqui seria, no mínimo, mau caráter. O que afirmo é que nem existe isso de SER sempre feminista, mas atitudes feministas, espaços feministas, linhas de fuga feministas. Deixar o cabelo liso loiro e cumprido não é uma atitude feminista. Isso não significa que tu vai perder a tua carteirinha da militância (que, aliás, é uma ironia muito mal intencionada da criatura ali em cima), até porque tal carteirinha não existe.

O que te coloca numa posição de feminista não é ter "decidido" ser uma barbiezinha, mas o que tu faz para além disso. A posição feminista que tu ocupa no mundo não é de mulher que decidiu ser mãe/casar com um homem/emagrecer/malhar/etc. O que tu faz no mundo para além dessa lista de padrões? O que tu desconstrói? O que tu enfrenta? Não se ocupa uma posição de feminista nessa vida sem confrontar nada.



Não se pode usar o feminismo como um escudo para proteger as tuas escolhas falsamente individuais. Tu não é barbiezinha porque tu quer. Assim como eu não acabei de cortar o meu cabelo bem curto simplesmente porque eu quis. E não estou falando de dominação, de influência, mas de discursos que nos formam. Ninguém é loira sozinha no mundo. Ninguém é gorda sozinha no mundo. Ninguém é dona de casa sozinha. Ninguém é peluda de cabelo rapado sozinha. Quando tu toma qualquer uma dessas decisões, elas funcionam em conjunto na sociedade, elas dizem alguma coisa para todas as outras pessoas. A guria magra diz pra gorda que ela é errada, mesmo sem intenção. A gente precisa ter noção do alcance dessas "nossas decisões".

Seguir uma listinha de padrões na vida é uma posição super confortável e feminismo não é sobre conforto. A gente não vai poder quebrar tudo sempre, dar na cara do patriarcado todo dia. Não seria possível viver assim. Mas a gente tem que saber que pensar em feminismo, estudar feminismo, agir de forma feminista TEM QUE ser resistir, enfrentar, deslocar. Tu pode ser loira, magra, casada com um homem, mas o que mais tu faz na tua vida? Tua vida de feminista não pode girar em torno desses comportamentos óbvios. E, mais uma vez, isso não é cagar regra, até porque o feminismo não é sobre regras, mas sobre quebras.

Quer pensar mais sobre isso? Escrevemos vários outros textos que giram em torno desse debate:


terça-feira, 14 de junho de 2016

who you gonna call?

Dia 14 de julho vai estrear nos cinemas o filme remake do "Caça-fantasmas". Agora com um elenco todo feminino. Adivinha as consequências disso? Choro de homenzinho, é claro!!

Da mesma forma que "Mad Max: estrada da fúria" incomodou por ter uma protagonista mulher super-master-hiper foda, "Caça-fantasmas" está dando o que falar desde que anunciaram o elenco. São quatro mulheres comediantes, não quatro mulheres gostosonas para agradar o olhar masculino. Ah, não, agora as feministas foram longe demais, tocaram num clássico do mundinho machinho!

Perfeito, Aline!

Vejam as poses de mulheres sedutoras sendo objetificadas!


Por que será que esse filme incomoda tanto? Hmm...

1 - ele mexeu num clássico cinematográfico macho-hetero
2 - ele tem mulheres protagonistas
3 - essas mulheres não estão lá como objetos a serem apreciados pelos homens
4 - esse filme vai ter uma legião de meninas que terão heroínas na infância, heroínas que lutam, gritam, brigam, são engraçadas, e não princesinhas

Quem se incomoda com essas quatro características listadas aqui? Homens machistas, é claro! Eles acham que tudo tem a ver com doutrinação feminazi, eles estão assustados com o movimento feminista que os impede de fazer o que bem entendem, eles têm um ódio profundo de feministas que expõem o quanto eles são uns vermezinhos chorões. Então, eles acreditam que esse filme faz parte de toda essa conspiração "politicamente correta" do feminismo, que está estragando o mundo deles.

Gente, o feminismo anda forçando as pobrezinhas das empresas a não serem machistas! Coitadas!

Só porque o filme tem mulheres ele vira uma "causa", que ainda destrói infâncias? Quando tem homens não é causa, é neutro?

Tem que, sim! Mi mi mi de feminista pode ser trocado por: análise sócio-política feminista.

Depende do que tu analisar, querido! Será que tu sabe analisar um filme sem pensar que é doutrinação feminazi, hein hein??

Meu filho, se as feministas são fracassadas, por que será que tem um filme dedicado (segunda a tua própria constatação) a elas? Hein hein??
E a criatura ainda tem a capacidade de fazer piada sobre os salários das mulheres serem mais baixos!

Se um filme só tem protagonistas homens, ele é legal, ele é ~normal~, ele é neutro, ele não tem uma pauta, uma causa política. Mas com protagonistas mulheres isso muda. Mulheres no cinema trazem junto feminismo, causas políticas, bandeiras, opiniões. Mulheres como protagonistas estragam a normalidade confortável do mundo machista. Um grupo de mulheres em papéis não direcionados a apreciação masculina deixa os homens confusos. Como assim esse filme não é pra mim, homem, ser supremo do universo?

E tem aqueles que justificam tentando dizer que não é machismo, é só a opinião deles que não se deve mexer em um clássico desses.


Por que teria necessidade de fazer um remake se o filme vai ser só uma repetição do antigo? Refilmar um filme significa fazê-lo de novo e de uma outra forma. Se surgiu a necessidade de trazer novamente essa história para o cinema, significa que ela deve ser pensada de acordo com o nosso contexto atual. Prefere os antigos? Assiste os antigos! Mas querer que a refilmagem seja igual, com o Bill Murray e cia, é querer que o mundo não evolua, não mude. E mudança é a coisa que mais assusta um homem machista, pois significa que ele vai ter que dividir seus privilégios, que ele não vai mais ser o único espectador dos filmes e propagandas. 

É necessário, sim, recontar histórias de uma forma diferente. Não pelo "politicamente correto", mas pela pluralidade de representatividade. Para que esses "clássicos" não sejam todos, novamente, só para homens. Alguns chegaram no absurdo de dizer que o "Caça-fantasmas" novo vai estragar infâncias! Não vai estragar, vai recriar novas possibilidades de ser criança, de ser menina e se ver nos filmes sendo algo diferente de uma donzela em perigo. É justamente disso que esses homens têm medo, dessas meninas que estão crescendo no meio de tanto empoderamento!



Chora mais que ninguém liga, omi!


Ps - não vi o filme e não posso analisá-lo, mas ele provavelmente vai ser cheio de problemas, como um que já me foi apontado por uma amiga em relação a personagem negra e seu papel de "não-cientista-conhecedora-das-ruas (foda...). Essa é a grande merda: quando parece que a gente conquistou alguma coisa, estamos só recebendo um espacinho ainda ruim, ainda preconceituoso, e que ainda foi concedido por homens. E esse mini espacinho já é o suficiente pra causar todo esse chororo entre os ominhos, e nós acabamos obrigadas a defender com unhas e dentes uma coisa com a qual nem concordamos muito. Não existe evolução, existe luta todos os dias!


sexta-feira, 27 de maio de 2016

7 atitudes simples para romper com a cultura do estupro

O fato irrevogável de se dizer "homem" nesse mundo já viabiliza milhares de modos de agir por vias sexistas, opressoras e violentas em relação às mulheres. Desde o modo de sentar, apertar a mão ou o modo de olhar, até as cenas mais literais como falar do corpo das mulheres, virar a cabeça na rua pra ver uma mulher que passa e mais milhares de estupros cotidianos escrotos, sobre os quais somos submetidas em casa e nos espaços públicos. Por isso é preciso falar sobre a cultura do estupro.
Separamos dicas bem simples, pra homens e mulheres que pela primeira vez estão pensando no tema:

1. Sobre dizer pra uma adolescente "como cresceu, tá um mulherão".
Toda a vez que um professor, um pai, um vovô, um titio diz isso para uma adolescente, ele está assediando essa adolescente. E não tem "mas..." pra isso. É assédio e ponto. Aceita que dói menos. Falar que uma menina já "parece uma mulher" é colocá-la na posição de que já pode se tornar um objeto a ser consumido, destruído, deformado pelo olhar masculino. Tu, como homem, não tem o direito de falar ou pensar no corpo de uma mulher - pra fazer piadas sobre como tu acha ela esquisita ou feia, ou pra tecer o teu escroto e suposto "elogio": seja ela uma adolescente, uma senhora ou uma adulta da tua idade. O corpo da mulher é da mulher e isso não te diz respeito. 


2. Sobre dizer pra uma criança "essa vai dar trabalho pro pai".
Pra começar, isso é parte da cultura da pedofilia. Isso significa dizer que uma criança, uma menina, mesmo que bem jovem, já é e vai ser um objeto para os homens. Isso é objetificar uma criança. Isso é derramar um esgoto imundo sobre uma menina. E essa frase tem duas partes: 1. dar trabalho, ou seja, vai ser mais uma mulher digna de estupro um dia (ao mesmo tempo em que já está sendo, na infância); 2. pro pai: ou seja, pro homem, né, afinal de contas, a filha é dele, é a "mulher dele", desde pequena. Enfim, nojo infinito dessa frase, dita por homens e mulheres.


3. Sair do grupo machista do whatsapp.
Não adianta bancar o desconstruído mas ficar no grupo machista do whatsapp, em que fotos de mulheres, piadinhas sexuais, raciais e homofóbicas circulam. "Ah, mas fico ali pra fazer o contrapeso". Cara, não vem com essa. Estar num grupo deles significa assinar que tu é conivente com isso. Quer fazer o contrapeso? Quer ser consciente? Sai do grupinho do whatsaap, chama teus amigos pra uma conversa olho no olho e conta pra eles o quanto eles contribuem para que a menina estuprada por 33 caras seja estuprada também por eles, naquele grupinho de merda. "Ah, mas é difícil conversar olho no olho." Sério? Beleza, identificamos mais uma pauta pra tu pensar sobre a tua vidinha medíocre com teus amigos. E tem mais: para de levar tudo na brincadeira e viver a superficialidade da conversa em que inúmeros preconceitos ficam estabilizados na dimensão do riso. Chega do riso que legitima a violência. 

4. Escutou machismo, racismo, homofobia, lesbofobia? Responda. Impeça. Diga não!
Não se cale. Não silencie. Não fuja. Não diga "não to a fim de me incomodar". Se tu é um homem, pode ter certeza, tu NUNCA te incomodou na vida. Quem se incomoda é mulher negra, mulher lésbica. Por todos os teus privilégios, tu deveria te sentir incomodado pelo menos 5 minutos por dia. Não te sentiu incomodado hoje ainda? Isso significa que hoje tu contribuiu pra que muita merda se perpetuasse no mundo - porque pode ter certeza, uma mulher foi incomodada hoje - pra dizer o mínimo. Não se fica quieto diante de machismo, racismo, homofobia, lesbofobia. Se tu identifica esse tipo de atitude, precisa dizer, precisa demarcar que não concorda, que é absurdo, que não vai contribuir com isso. Diga não, todos os dias. DIGA NÃO.


5.  Não acredite na ideia de que "ele faz piadas machistas mas no fundo é gente boa".
Taí uma coisa que muita gente não entende. Não existe isso de ele é racista mas é um cara legal, meio perdido só. Não existe. Um racista não é uma pessoa legal. Um machista não é um cara legal. Um homofóbico não é legal. E isso não significa que essas pessoas não possam aprender. Ao contrário, queremos acreditar que sim, que é possível se transformar e ser melhor pra si e pros outros. Mas enquanto a pessoa está dizendo isso, NÃO, ela não é "do bem", "ingênua" e "querida, apesar dos pesares". Ela segue mantendo uma cultura que mata, estupra, violenta, criminaliza, ofende, fere, machuca MILHARES de mulheres. Esse teu amigo machista NÃO é uma pessoa legal até que seja. Melhore. 

6. Desfaça amizades que não buscam transformar suas ideias. 
Se tem uma coisa que liberta nessa vida é acabar com amizades tóxicas. Digo por experiência própria. Se tu tem paciência de conversar com teu amigo reaça, opressor, manipulador e explicar pra ele que essas atitudes não vão bem e, mesmo assim, a pessoa não quer te ouvir, continua zombando das dores dos outros, continua te enviando fotos e vídeos de mulheres nuas, continua chamando de gostosa ou de baranga a colega de trabalho, não tenha dúvidas: desfaça essa amizade. Ela não te traz transformação, ela não afirma uma vida por mais igualdade, ela não é boa pra ninguém. Ninguém é obrigado a ensinar pra um fascista que ele tá completamente errado. Vai procurar parcerias que te fortaleçam!


7. Destrua o "conceito" de homem que todos ensinaram a ser. 
Te ensinaram todos os dias o que é ser homem. E tu ensina pros outros que ensinam pros outros. Te disseram que tu no máximo ajuda no serviço da casa. Te disseram que tu é Gremista ou Colorado. Te ensinaram a ir num estádio e fazer um churrasco pautado na imbecilidade de quem não sabe falar sobre qualquer coisa além das mulheres que tu comeu ou comeria. Te ensinaram a não ver que comer carne e ser machista tem TUDO a ver. Te ensinaram a não saber usar as palavras. Te ensinaram a cumprimentar teu amigo chamando ele de puto ou viado de um jeito carinhoso assim, de brother. Te ensinaram a falar a patroa é quem diz a última palavra ou lá em casa eu digo a última palavra: sim senhora. Te ensinaram que se tu tiver uma filha tu vai ser o fornecedor. Te ensinaram a não ouvir quando uma mulher fala e, quando escuta, vai dizer que é DR ou sermão. Enfim, te ensinaram a não ser uma pessoa - te desumanizaram e tu vive o privilégio que encontra nisso. E o que tu faz agora? Começa a pensar em ser uma pessoa. Sabe tudo isso e muito mais? Quem sabe tu começa a analisar todas as formas de ser homem que estão entranhadas na tua vida e passa a te humanizar, passar a ser o contrário disso tudo?

Eu acredito na transformação de algumas pessoas. 

sexta-feira, 29 de abril de 2016

o que pode uma mulher jovem hoje?

Venho pensando em um tema pra um texto faz tempo, mas não sabia como abordar. Aí surgiu o "bela, recatada e do lar". E esse vídeo da Jout Jout:


De todas as coisas que a gente podia escrever sobre a história do "bela, recatada e do lar", acho que o mais produtivo ainda é falar da reação das mulheres. Não vou me cansar aqui escrevendo mais um texto explicando o quanto aquela "reportagem" foi machista. Quem não entendeu até agora, não vai entender nunca. Mas a reação das mulheres foi uma coisa linda e merece ser falada pra sempre! Isso mostrou que machismo não passa mais mesmoooo, não tem jeito!



Quando eu vi as fotos maravilhosas das nada recatadas mulheres, saí correndo pra procurar alguma foto minha pra postar. Tenho muitas fotos absurdas, foi até difícil escolher. E aconteceu uma coisa engraçada na minha relação com essas fotos loucas: eu queria postar todas elas! Todas aquelas fotos que eu sempre quis esconder, porque eu fiquei horrível, atirada no chão com a calcinha aparecendo, a cara torta de bêbada, o cabelo suado grudado na cara, o batom borrado, tudo isso tava parecendo lindo agora! Todas as selfies que tinham dado "errado" me pareceram melhores do que a selfie escolhida para postar no Instagram! Essa campanha feminina maravilhosa fez com que eu amasse meus momentos mais podres, que eu me achasse linda nas fotos das quais eu sempre tive vergonha.

E isso me levou a reparar em uma outra coisa: tudo que é tipo de mulher postou fotos "recatadas". Especialmente gurias novas, adolescentes, ou jovens nos seus 20 e poucos. Fiquei pensando sobre mim, sobre o quanto isso seria impossível quando eu era novinha. Vejam bem, não sou velha, tenho 29, mas a diferença de quando eu tinha 20, lá em 2007, é gigante! Como bem disso a Jout Jout, a gente não podia se achar!



Eu fui criada achando que o certo era ser bela, recatada e do lar mesmo. Eu ficava feliz quando me diziam que eu era menina para namorar/casar e não só pra pegação. Eu fui uma adolescente cheia de medos. Eu queria ser invisível, repartia meu cabelo no meio como a Jout Jout mostrou e me comportava de um jeito que eu achava que era certo. Me ensinaram que algumas condutas eram coisa de "puta" e eu não queria ser puta. Eu queria ser guria pra namorar, casar, ter filhos e ser recatada. Eu realmente pensava isso, dos meus 13 anos até meus, sei lá, 26 provavelmente.

Por isso eu fico muito impressionada (e feliz!) com gurias de 18, 19, 20 que postam fotos bêbadas em festas, que saem na marcha das vadias com os peitos de fora. Claro que elas ainda enfrentam várias merdas por fazerem isso, mas hoje pode, mais do que podia em 2004, e isso é lindo! O feminismo existe há bastante tempo, mas não atingia quase ninguém como atinge hoje.

Eu não fico pensando que me arrependo do que eu fiz quando era adolescente, porque gosto da pessoa que sou hoje. Mas fico um pouco triste por esse meu "eu" do passado, por essa Ananda que se escondia, que não podia "se achar", que não fazia a menor ideia do que era empoderamento, que queria ir a festas, mas tinha medo de virar puta, que usou o mesmo cabelo e as mesmas roupas por anos, porque só usava aquilo que tinha cara de menina bonitinha pra namorar, porque era isso que ela achava que queria ser. 

Às vezes eu me percebo tendo pensamentos bem de velha mesmo. Quando vejo as roupas que as gurias de 21 usam, por exemplo! Fico chocada com a audácia maravilhosa delas! Elas podem usar barriga de fora! Elas usam batom preto! Elas pintam, raspam, cortam do jeito que querem o cabelo! Elas não se depilam! Elas escrevem textão no face! Elas se acham! Migas, me abracem, vocês são maravilhosas! Vocês sabem o que aconteceria comigo em 2008 (tipo, há menos de 10 anos!) se eu usasse barriga de fora, batom roxo e platinasse meu cabelo? Ostracismo social, no mínimo!



Hoje, vivo uma mistura de recuperar todo um tempo perdido, fazer tudo aquilo que eu sempre quis, me reapropriar do vocabulário que eu tanto temia e eu mesma me chamar de puta. Ao mesmo tempo, já tenho um distanciamento da adolescência/juventude o suficiente para complexificar esse comportamento. Uma coisa que eu aprendi nesses meus pouquíssimos anos podendo ser mais eu mesma, podendo me achar, beber e usar barriga de fora, é que muito do nosso comportamento ainda é bastante regulado por uma lógica patriarcal. Muito do que a gente acha que é liberdade, é só um novo controle dos nossos corpos.

Algo que eu considero um grande erro de análise do "bela, recatada e do lar" é dizer que quem quer ser recatada, que seja. Cada uma escolhe o que quer ser. Olha, não é bem assim. A gente não escolhe ser recatada e do lar, escolhem isso por nós. Essa liberdade de escolha não existe assim de boas, não. Inclusive, escolher não ser recatada também não é uma decisão individual totalmente baseada só na nossa vontade própria. Não concordo muito com essa história de "lugar de mulher é onde ela quiser", porque isso não é suficiente para pensar nossa sociedade. Para que lugar de mulher seja onde ela quiser, a gente precisa quebrar muito padrão ainda. Na atual condição social e histórica que vivemos, pensar que uma mulher escolheu ser recatada é bastante perigoso. Abre precedentes pra justificar abuso, por exemplo. Até porque ser "recatada e do lar" como a Veja nos propôs não significa ser dona de casa e casada apenas, mas ser submissa. Que mulher escolhe por livre e espontânea vontade ser submissa? Cuidado com o que tu chama de liberdade de escolha.



É difícil analisar nosso próprio tempo, nos deixamos cegar pela intensidade das luzes a nossa volta. Um deslocamento é algo muito necessário. Então, migas jovens maravilhosas, não sejam recatadas mesmo, não tenham medo de serem putas, não tenham o medo que eu tinha anos atrás. Mas, também, se questionem o tempo todo. Não fujam de um padrão para cair em outro. Esse é o grande perigo de ser mulher na nossa sociedade. Quando a gente nega um comportamento, às vezes estamos ainda a serviço do gozo masculino. 

Ser mulher hoje é se questionar sempre, é enfrentamento, é pensar em sororidade e empoderamento. Para mulheres de qualquer idade, óbvio, mas a gente vive numa sociedade que olha muito pra juventude, portanto, gurias jovens e adolescente, sejam mulheres questionadoras (da sociedade e de si mesmas). Uma atitude feminina ética do nosso tempo é não ser recatada mesmo. Se tu te preocupa com outras mulheres, tu deve ser a primeira a ir contra padrões opressores de comportamento. Nenhuma decisão tua é individual. Tudo que tu faz (ser do lar ou beber nas baladas) atinge as outras mulheres. Por isso que quebrar padrões de comportamento significa dar um passo atrás e se questionar sempre pra não cair nas grandes ciladas que esse mundinho machista montou na nossa frente.


segunda-feira, 11 de abril de 2016

10 séries para quebrar padrões

Assim como muita gente por aí, sou mais uma dessas loucas por séries. Eu assisto muita coisa, de séries podres guilty pleasure a lindezas poéticas maravilhosas! No meio desse mundo de séries que tem por aí, existe muita porcaria, muita história que só perpetua estereótipos e faz um desserviço pra nossa vida. Por isso, resolvi usar esse conhecimento meio inútil que fui acumulando nessa vida de procrastinação pra criar uma lista de série que lidam com questões de gênero e sexualidade, quebram estereótipos, saem do senso comum.

Aí vão dez lindezas de séries de vários estilos diferentes pra escolher e começar a ver hoje (no lugar de todo aquele trabalho que tu teria pra fazer):

Broad City


Essas gurias são maravilhosas! A série é criada pela própria dupla que nela atua e lida com mil e uma questões importantes, com um humor meio nonsense. As duas fazem tanta merda e tomam tantas decisões absurdas que a gente chega a ficar agoniada! Mas é muito bom assistir uma série com pessoas que cometem muitos erros, que são "perdedoras" na vida, não são guriazinhas bonitinhas que têm mil caras apaixonados por elas. A série lida com padrão de beleza, com trabalho, com relacionamento, com sexualidade e, especialmente, com amizade feminina. A cada episódio ela fica melhor, vicia e não existe mais vida sem as malucas Ilana e Abbi.

Transparent


Ai, essa série! Só a entrada com imagens de "arquivos" e uma musiquinha coisa mais linda já dá uma dorzinha boa no coração. Muita gente conhece essa série pelo seu tema principal: um pai de família que resolve se revelar uma mulher trans depois dos seus 60 anos de idade. Mas tem muito mais. Todos os personagens têm alguma questão sobre gênero e sexualidade. Além de também ser uma história sobre relacionamento familiar. É uma série de drama, com alguns momentos engraçados, fofos e extremamente tristes. Uma lindeza que ainda tem um cuidado com técnica, fotografia, trilha sonora, deixando aquele ar de filme cult desconstruidão e bem feito! É genial.



The Fall


Gillian Anderson sendo foda e dando na cara do patriarcado. Apenas isso. Tá lá no Netflix, sendo uma série super feminista e ninguém nem fala sobre ela! The Fall é uma série policial, de investigação, com todo aquele drama contagiante de "será que vão pegar o assassino?", "será que no próximo episódio o cara vai matar mais alguém?", e, ainda, com questionamentos incríveis sobre ser mulher num mundo comandado por homens super machistas e conservadores. Ela dá na cara o tempo todo! Ela é simplesmente uma mulher que faz tudo que tem vontade e sabe muito bem o que quer, e isso é lindo! Não tem como assistir e não pensar: pelamordadeusa, quero ser essa mulher!

Mulher fode homem. Mulher sujeito. Homem objeto. Isso não é tão confortável pra você, não é? 
BAM!!


Banana


Essa série faz parte de um trio: Banana, Cucumber e Tofu. Só assisti Banana, por isso escolhi só ela pra colocar aqui, mas as outras tratam dos mesmos assuntos. Nessa série, cada episódio é separado um do outro. Alguns personagens se repetem, mas as história começa e termina no mesmo episódio. Todos os personagens são sempre gays, lésbicas, trans, enfim, LGBT. Tem muitas questões delicadas, importantes e corajosas de se abordar: imigração e trabalho ilegal, estupro, TOC, revenge porn, entre outros. Até agora, pelo que eu vi, por mais que os episódios sejam dramáticos e complexos, eles sempre terminam em um clima de esperança. To achando isso maravilhoso e necessário ultimamente. Tu passa meia hora conhecendo o mundo complexo daqueles personagens, ficando assustado com as situações de rejeição e humilhação que eles sofrem, mas a série ainda acredita nas pessoas, ainda acredita no mundo. E porque não ser um pouco otimista de vez em quando?

Please Like Me


Essa série tem muito mais homens do que mulheres como personagens, mas mesmo assim acho válido colocar aqui num blog feminista. Primeiro porque eu amo demais! Segundo porque é muito bom assistir mais coisas que lidam com relacionamentos homossexuais de formas diferentes. A série começa com o personagem principal "descobrindo" que é gay. A namorada dele termina com ele e diz: "cara, tu é gay". E ele: "OMG, eu sou gay, e agora?". Please like me também me apresentou a minha nova banda favorita com a música dos créditos iniciais (que são um detalhe maravilhoso da série, tendo sempre a mesma música, mas com situações diferentes, geralmente envolvendo o personagem principal cozinhando). Além de ter muitos personagens gays e lidar com temáticas sobre sexualidade, a série também trata da mãe do personagem principal, uma mulher com depressão que é internada num hospital psiquiátrico. Através dessa internação, a gente passa a ter contato com vários outros personagens que passam por situações semelhantes as dela. Eu não conheço nenhuma outra série que tem tantos personagens com doenças psiquiátricas sérias. Please like me é muito original, engraçada, bonitinha e corajosa nas suas temáticas.



Jessica Jones


A gente já escreveu um texto inteiro sobre essa série aqui no blog, mas ela merece ser mencionada de novo. Com essa explosão Marvel dos últimos tempos, é muito bom ver que as mulheres estão sendo incluídas em toda essa produção de heróis/heroínas. Essa é uma série sobre abuso, sobre amizade e força feminina. É sobre mulheres também poderem fazer parte desse universo nerd/geek dos quadrinhos. 

How to get away wiht murder



Annalise Keating é uma criatura que explode poder e fragilidade ao mesmo tempo. Isso é o mais lindo dessa série, na minha opinião. Não é só uma mulher super foda, mas uma mulher foda e humana, triste, frágil. Ela resolve tudo e sofre tudo. Ela é empoderada, mas também sofre com machismo e controle masculino. Além da Annelise, a série também tem outros personagens interessantes que quebram com estereótipos. Mais uma série que eu chamaria de corajosa, até por não ter medo de colocar o dedo na ferida e criticar as nossas noções de justiça e crime. Viola Davis é muito poder e representatividade!

The Mindy Project


Essa série não é assim "ah meu deus que incrível", mas tem seus méritos. Primeiro por ser criada pela Mindy Kalling, o que é maravilhoso, porque não tem muita mulher não-branca, não-magra, ganhando destaque e oportunidade por aí. A Mindy é muito engraçada e a série é bonitinha, inteligente e gostosa de assistir naqueles momentos que a gente quer descansar. Mas descansar sem ter que ver mais uma mulher magra-loira-rica (ou, mais comumente, um omi) sofrendo com seus "super problemas". Assistir Mindy também dá vontade de sair comprando roupas coloridas e escandalosas que nem ela, e isso é bem empoderador! Uma mulher fora dos padrões de beleza usando muita roupa linda e colorida é algo necessário nessa vida! Tem algumas situações bem mundanas para as gordinhas que aparecem ali e a gente se sente representada. Sempre lembro de uma em que a Mindy chama atenção para quanto uma mulher é magra por ela ter a capacidade de cruzar as pernas em cima de um banco num bar. Eu assisti e pensei que essa cena parecia ter saído da minha cabeça! Realmente, Mindy, as magrinhas não se dão conta do privilégio que é conseguir cruzar as pernas e sentar bem confortável e bonitinha em qualquer banco por aí. Mindy representa!

Being Mary Jane


Essa série é muito importante especialmente pela representatividade dos personagens negros (assim como acontece com Viola Davis ali em cima). As mulheres negras não têm a oportunidade de se enxergarem nas personagens por aí e isso é muito necessário. Apenas pelo fato de ser sobre uma mulher negra que trabalha muito numa posição de poder, que tem que lidar com problemas familiares bem sérios e omis escrotos, ela já se torna importante. O relacionamento da Mary Jane com alguns caras é especialmente interessante. A gente fica pensando "não, miga, não faz isso, sai dessa", e justamente por nos fazer pensar isso, a série faz com que a gente direcione o olhar de volta pra nós mesmas. A Mary Jane se coloca numa posição de amiga que precisa de conselhos, despertando na gente um senso crítico pra nossa própria vida. Ah, e tem uma bela trilha sonora!

Grey's Anatomy


Sim, Grey's!! Juro que essa série é mais do que um monte de médico de olho azul chorando e morrendo! Talvez, a essa altura da vida, seja difícil assistir sem saber já um monte de spoiler, mas vale a pena justamente pelas questões que a gente não fica sabendo se não assiste. Eu tenho a maior dificuldade de convencer as pessoas de que essa é uma das melhores séries que existe, além de combinar aquelas vontadezinha que todo mundo tem de ver uma novela dramalhão! Quem vê séries conhece a Shonda Rhimes e as loucuras dramáticas que ela cria! Mas sabe também que não tem criatura que coloca mais diversidade do que ela nas tramas. As séries da Shonda nunca são sobre ser gay, negro, portador de deficiência, pobre, doente. As minorias todas simplesmente estão ali, fazendo parte da vida, justamente porque fazem parte da vida! Mas Grey's, na minha opinião, vale mais a pena por um motivo: amizade. Essa série ensina o que é amizade, especialmente entre mulheres. Mais do que amizade, é ser a "pessoa" uma da outra. Compra uns lenços, te agarra num cobertor, e assiste essa maravilha! A vida faz mais sentido quando a gente conhece bem a Meredith e a Cristina!

Que outras séries vocês indicariam para quebrar estereótipos, pensar gênero e sexualidade?