sexta-feira, 17 de novembro de 2017

minha vida é minha

No evento "Mulher do ano" de 2017 da Glamour, a atriz Tracee Ellis Ross fez um discurso muito lindo sobre ser mulher e dona da própria vida. Resolvi traduzir porque acho que todo mundo deveria ler essa preciosidade. Então aí vai:

É muito interessante ser uma mulher de 45 anos que não é casada nem tem filhos, especialmente quando você acabou de parir seu quinto filho na TV. Você começa a ouvir merdas como: "Ah, você só não encontrou o cara certo", "O que você vai fazer?", "Ah, coitadinha", "Por que alguém como você está solteira ainda?", "você já pensou em ter filhos?", "Por que você simplesmente não tem um filho sozinha?". Isso nunca termina e não ajuda.

Eu cresci planejando um casamento. Meu vestido teria um corsete com múltiplas camisolas vintage derramando-se sobre meus ombros, e eu mudaria a roupa para um terno branco trespassado e calças pantalonas, para a recepção. Eu sonhava sobre ser escolhida por um homem poderoso, sexy, bondoso, com lábios carnudos e que sabia dar um bom abraço, e eu teria um filho chamado Lauren.

Mas eu também sonhava em ganhar um Oscar e aparecer em capas de revistas e fazer a diferença no mundo, ajudar mulheres a acharem sua próprias vozes. E a partir desse sonho, eu construí uma vida incrível. Eu me tornei uma mulher da qual eu tenho orgulho.

E aí alguém me diz sobre a sua amiga que adotou uma criança aos 52 anos de idade e como "nunca é tarde para dar sentido a sua vida", e o meu valor é diminuído no momento em que sou lembrada que eu "falhei" em relação ao casamento e o que isso carrega. EU! Essa mulher ousada, livre e independente. Quer dizer, eu pratico exercícios físicos, eu me alimento bem, eu quase sempre vou trabalhar no horário certo, eu sou uma boa amiga, uma filha dedicada, trabalhadora, tenho um bom crédito, eu tiro o lixo antes que ele fique fedido, eu reciclo, e eu ganhei um Globo de Ouro! Eu estou arrasando! Então, por quê? Por que eu sou incomodada desse jeito? Como se tudo que eu fiz e tudo que eu sou não importasse.

Eu olho para trás e penso em todas as maneiras em que nos dizem que esses dois objetivos (ser escolhida por um homem e ter filhos) são o que te fazem ter valor. Quero dizer: canções de ninar, fábulas, livros, filmes, "Sixteen Candles", todas as músicas de amor, e até o "Black-ish" - todos reiterando essa história limitada de que "marido + filhos = mulher". E o patriarcado - o patriarcado não está feliz comigo no momento. Eu estou falhando na minha função. Deixa eu contar para vocês, Mike Pence está muito confuso comigo no momento.

Francamente, frequentemente eu fico um pouco confusa. Então, aqui está algo que eu fiz mais vezes do que eu gostaria de admitir: tentar arranjar a coragem para dizer para o meu ex (quem eu amo muito) que eu quero sair com outras pessoas, mesmo a gente não estando mais juntos - nós estamos separados! E durante o período em que eu fiz isso, eu fiz o que mulheres esclarecidas fazem e peguei o meu diário. Eu fiquei sentada lá escrevendo, talvez conversando com a minha criança interior, e escrevi: MINHA VIDA É MINHA. Minha vida é minha.

Essas palavras me pararam e, honestamente, trouxeram lágrimas para os meus olhos, muitas lágrimas. Parece tão óbvio, mas obviamente não é. Porque eu não estava vivendo a minha vida como se ela fosse minha. Claro, de certa forma eu estava, mas num nível mais profundo não. Então, se a minha vida é realmente minha... eu tenho que realmente vivê-la por mim. Eu tenho que me colocar em primeiro lugar e não pedir permissão para fazer isso.

Mas, quando eu me coloco em primeiro lugar, o que volta para mim através de pessoas cheias de boas intenções - a maioria homens, redes sociais, mulheres aleatórias na academia, Mike Pence, qualquer um -  eles me dizem de todas as formas que eu estou sendo egoísta, que estou pressionando demais, sendo agressiva, controladora, implacável, teimosa, uma vadia, uma "resmungona", ah, e o meu favorito, que eu piso nos outros, porque deus proíba que alguns sejam pisoteados no meu caminho.

Quando a gente se coloca em primeiro lugar fazendo coisas como dizendo não, falando alto, transando com quem a gente quer, comendo o que os nossos corpos intuitivamente nos dizem para comer, quando usamos sutiãs confortáveis e não os que levantam os seios, postamos uma foto sem filtro... Nós somos condenadas por pensarmos por nós mesmas e sermos nós mesmas, por nos apropriamos das nossas próprias experiências, corpos e vidas.

Esse tipo de coisa é visto como ameaçadora e assustadora e certamente não é o que o patriarcado tem em mente. Junte-se a mim por um momento e imagine: como seria se as mulheres possuíssem completamente seu próprio poder, tivessem agência sobre sua plenitude e sua sexualidade, não para criar um produto e vendê-lo, ou se sentir digna de amor, ou usar isso como ferramenta de proteção, mas como um modo de vida? Imagine isso... verdadeiramente possuir seu próprio poder, agência e sexualidade.

Especialmente nesse momento, com toda a sua instabilidade, com tudo que está acontecendo como a árvore "Pussy Grab" que é sacudida e "agarradores" estão caindo dela como frutas podres. E ao mesmo tempo, com o surgimento do empoderamento: Black Lives Matter. Black Girl Magic. The Women's march! Me too!

Eu estou tentando unir toda energia ao meu redor, entrar nela, e combinar isso com a ideia de que a minha vida é minha. A minha "eu que escolho, vida de 45 anos" é minha. Não é coincidência que essas duas forças estão se encontrando ao mesmo tempo. Então aqui estou determinando como é a minha vida quando ela é totalmente minha. É preciso bravura para fazer isso. Significa arriscas ser mal entendida, vista como sozinha e quebrada, como quem não tem alguém para se apoiar, pedir ajuda ou se esconder, tendo que ser meu próprio suporte e tendo que se esforçar para achar amor, família e conexão fora dos lugares tradicionais. Mas eu quero fazer isso. Eu quero ser a minha versão corajosa, a minha versão real, aquela que possui a própria vida.

Isso significa que eu vou ter que quebrar um acordo que eu não aceitei oficialmente assinar, um documento feito por um bando de homens brancos velhos numa sala, o mesmo grupo de brancos velhos que gosta de criar leis sobre a nossa saúde e escolhas reprodutivas sem que a gente esteja lá para decidir junto. Esse acordo diz: nós estamos aqui para estar a serviço dos outros, que o nosso destino é viver à sombra dos homens, que nós somos apenas objetos de desejo, e que nós estamos dispostas a viver tendo as nossas vozes sufocadas repetidas vezes pela misoginia da nossa cultura.

Bem, escutem aqui, mulheres: eu estou rasgando esse acordo. Estou dando tchau para ele e fazendo um novo, e os meus termos são esses: eu vou possuir as minhas experiências. Eu vou prestar atenção na realidade da minha vida e na audácia dos meus sonhos em vez de seguir as expectativas nas quais eu fui criada. Eu vou dar espaço para o que tem de bom e de ruim nisso, mesmo as partes assustadoras, e abraçar todas as partes e todas as perguntas. Eu sei que é assim que eu passo de Tracee à Tracee corajosa.

Aqui vai uma boa notícia: você também pode ir de ser apenas você, para a sua versão corajosa. E você definitivamente deveria tentar se você ainda não fez isso! Porque a sua versão corajosa é linda! Não linda como quando você arruma o cabelo e faz as sobrancelhas. Quando eu penso no que é lindo, eu penso numa árvore; eu penso num pássaro cantando. Eu penso em uma mulher de corpo inteiro; eu penso na minha mãe na sua plenitude de dizer "essa sou eu", com os braços levantados, o coração aberto, o cabelo enorme, sexual, poderosa e cheia de agência.

Estar a altura de sua própria ressonância, de seu próprio ser. Totalmente aflorada. É assim que se parecem a beleza e a coragem. Mas principalmente porque o meu eu corajoso me lembra que eu sou completo apenas sendo eu. Não em relação a outra pessoas ou outra coisa, apenas totalmente e completamente eu.

O seu seu corajoso te dá bravura de se apoiar na sua própria agência, sua própria escolha, seu próprio desejo, sua própria espera, seu próprio medo, seu próprio luto, seu próprio futuro. O seu eu corajoso é só um aspecto da sua alma que te ajuda a ficar totalmente inserida e integrada com o seu verdadeiro eu. Esse eu corajoso está em você agora, no seu diário, no canto da sua mente, na sua lista do Netflix, esperando o seu convite. Então a deixe sair, deixa que ela tenha toda a sua plenitude. Essa parte linda e poderosa de vocês está apenas esperando o seu convite.


Pra quem quiser ler o texto original, segue o link: https://www.glamour.com/story/tracee-ellis-ross-glamour-women-of-the-year-speech-2017?mbid=social_facebook_fanpage

Tradução feita por Ananda Hilgert


sábado, 4 de março de 2017

sobre girls, esquerdomachos e valorização de si

Tenho uma relação de amor e ódio com a série Girls. Quando comecei, eu me apaixonei pela Lena Dunham, fiquei chocada com o quanto ela mostra o corpo gordo e flácido e isso fez eu me sentir bem, sentir que eu podia fazer o que eu quisesse com o meu corpo também. Aprendi um monte de coisa com essa série e tive muita raiva da maioria dos personagens. Eu sei também que ela é uma série bastante branca e a Lena Dunham não é o exemplo de feminista a se seguir, mas, mesmo assim, acho que vale a pena assistir.



A sexta temporada começou recentemente e eu não estava nem um pouco empolgada, porque odiei a quinta. Mas hoje eu vi o terceiro episódio dessa nova temporada e fui obrigada a reconhecer que a Lena Dunham ainda tem muita coisa pra nos dizer. 

(A partir daqui vão ter milhões de spoilers do episódio. Esse não é o tipo de episódio que se pode estragar com spoiler, porque ele não é só sobre o que acontece. Então, tu que sabe da tua relação com essa história de ter pavor de spoiler)

A Hannah vai na casa de um escritor, e logo a gente descobre que ele chamou ela lá por causa de um texto que ela escreveu sobre ele num blog feminista. Algumas mulheres denunciaram esse tal escritor dizendo que ele estava se beneficiando da sua posição para transar com gurias na turnê do seu livro.

Esse tal esquerdomacho-escritor convidou a Hannah para contar o "seu lado" da história. Ele diz que não está conseguindo dormir, que está preocupado com o quanto essa história pode fazer mal a sua filha, que a vida dele está sendo arruinada por causa dos textos sobre ele. Ele quer convencer a Hannah que não ouve assédio, que ele é só um cara adulto convidando mulheres adultas para o seu quarto de hotel. A gente nunca ouviu isso de um cara antes, né?



No meio disso, ele atende o telefone e fala com a sua ex-mulher sobre a filha dos dois. Quando desliga o telefone, ele faz questão de dizer pra Hannah que a ex-mulher é uma desequilibrada, uma mulher problemática, mas que ele está sendo bem legalzão e tentando considerar ela uma boa mãe.

Esse episódio é tão cheio de mini detalhes que não tem como falar sobre tudo. O personagem do escritor usa todas as frases mais clássicas, se coloca em posição de vítima, de homem que sofre por não controlar seus impulsos e por não conseguir se relacionar com mulheres. Ele fica nervoso com o uso da palavra consentimento e diz que na sexualidade existem muitas "gray areas". Ahãn, claro!

Ele lê para Hannah o que ele escreveu sobre a mulher que fez uma das principais denúncias e é um texto tão nojento, tão machista, tão objetificador e redutor da mulher, mas ele lê como se não fosse nada, como se aquele texto provasse o quanto não teve nenhum assédio acontecendo.

A Hannah conta pra ele uma história de assédio que ela sofreu na infância pra tentar dar um exemplo pro machinho, pra ver se ele entendia o que era consentimento, o que significava ele chamar um guria que é fã dele pro seu quarto de hotel. Como todo bom esquerdomacho, ele entendeu essa história como algo particular, e se mostrou compadecido. 

O tempo todo em que eles conversavam, ele elogiou a Hannah, disse que só chamou ela (e não todas as outras que escreveram sobre ele) porque ela era inteligente e engraçada. Hannah é fã dele também. E não tem nada mais emocionante do que receber mil elogios do teu ídolo. Com tanto interesse nela, com tanto charme, rodeada de livros no apartamento absurdamente lindo do escritor, Hannah baixa sua guarda. Ela fala até o quanto gosta de Philip Roth, mesmo sabendo que não devia por ele ser muito machista. Ela até revela o quanto gostaria que alguém escrevesse sobre ela do jeito que Roth escreve sobre as mulheres, mesmo sabendo que isso só faria dela uma vadia objetificada. Hannah se despiu de todo o discurso feminista que estava defendendo muito ferozmente nos primeiros momentos do encontro com o escritor.

Como mais um ato de interesse em Hannah, o escritor dá a ela sua cópia autografada de um livro do Philip Roth. Depois disso, ele deita na cama e pede para Hannah deitar do lado dele, só porque ele anda se sentindo muito sozinho e queria ficar próximo de alguém. Ele insiste que não vai acontecer nada, que ela pode ficar de roupa. Hannah, abraçada no livro de Philip Roth recém recebido, respira fundo e deita do lado dele. 

Os dois estão deitados na cama, Hannah de barriga pra cima e o escritor virado de costas pra ela. Ele se vira vagarosamente de frente pra ela e se encosta mais no corpo de Hannah. Ela olha pra sua perna e vê que o escritor abriu a calça e deixou seu pênis pra fora, roçando na coxa dela. Hannah fica desconfortável, não sabe o que fazer e agarra o pênis dele por alguns segundos. 

Num salto rápido, ela pula da cama e se dá conta do que está acontecendo, se dá conta de que ela tocou no pênis dele sem nem desejar isso. Ela percebe que entrou no jogo dele assim como tantas outras. Hannah, que escreveu sobre o escritor ser um abusador, que foi lá pra dar uma lição feminista nele, essa mesma Hannah se viu deitada do lado de um cara que ela não tinha interesse, abraçada num presente recebido dele enquanto agarrava seu pênis cuidadosamente colocado sobre a sua coxa.

Depois disso, ela ainda assiste a filha dele tocando flauta, enquanto olha pra cara de pai orgulhoso do escritor, cara de homem que ainda se vê como vítima, de homem que finge não perceber o que fez, o que é. O episódio termina assim, com Hannah saindo do apartamento e caminhando em silêncio pela rua, numa calçada somente com mulheres viradas de costas para o espectador, enquanto a trilha sonora toca Rihanna. 



Esse episódio é tão pesado e delicado ao mesmo tempo, que eu senti vontade imediata de escrever sobre ele, mesmo sabendo que nunca vou conseguir transmitir os detalhes dolorosos dele. Mesmo quem não assiste a série, pode ver só esse episódio, porque ele é fechado, não movimenta a história geral da série. Ele é só um tapa na cara mesmo, um aviso sobre assédio silencioso e velado. 

Nunca vai se falar o suficiente sobre assédio. A gente é mais assediada do que nós próprias percebemos, e as ciladas machistas estão colocadas diante de nós todos os dias. A Hannah foi na casa desse escritor cheia de si, empoderada por seus conhecimentos feministas, cheia de certeza e controle do próprio corpo. Ela não foi fraca, não foi burra, não foi vadia. Ela foi vítima. E vítima de algo tão silencioso que ela não teria como contar pra alguém. Ninguém nunca entenderia o assédio que ela sofreu. Afinal, ela foi no apartamento dele porque quis, ele não colocou uma arma na cabeça dela, não estuprou ela, não forçou a mão dela em direção ao seu pênis.

Precisamos estar atentas aos detalhes. Precisamos ser brutais, barulhentas, mulheres que ocupam espaço, que quebram o que encontram pela frente. Não dá mais pra entrar em joguinho de esquerdomacho. A Hannah só caiu no papo daquele cara porque ela se reduziu ao que ele pensava dela, ela viu seu valor sendo definido por ele, ela esqueceu quem ela era e se tornou apenas aquilo que ele deixava ela ser. Não façam isso, mulheres. A gente é muito mais que isso.

Link do torrent pra quem quiser baixar: https://tpb.cr/torrent/17184266/Girls.S06E03.HDTV.x264-BATV[ettv]

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

sou mais king kong do que sou kate moss

Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça. E começo assim para que tudo fique claro: não me desculpo de nada, não vim aqui para reclamar. Não trocaria de lugar com ninguém, porque ser Virginie Despentes me parece um assunto muito mais interessante do que qualquer outro. Me parece formidável que também existam mulheres que gostem de seduzir, que saibam seduzir, e outras que saibam casar; que existam mulheres que cheirem a sexo e outras à merenda dos filhos que saem do colégio. Formidável que existam algumas muito doces, outras realizadas em sua feminilidade; que elas sejam jovens, muito bonitas, ou coquetes e radiantes. Francamente, fico muito por todas aquelas a quem convêm as coisas como estão. E digo isso sem menor ironia. Eu, simplesmente, não sou uma delas. Com certeza não escreveria o que escrevo se fosse linda, linda o suficiente para mudar a atitude de todos os homens que cruzam o meu caminho. É do ponto de vista de uma proletária da feminilidade que falo, que falei ontem, e que recomeço hoje. (...) Fico louca de raiva quando, na condição de mulher que interessa pouco aos homens, as pessoas tentam me convencer, sem parar, de que eu não deveria nem mesmo existir. Nós sempre existimos. Mesmo que nunca se fale de nós nos romances escritos por homens, que eles só consigam imaginar mulheres com as quais gostariam de transar. Nós sempre existimos - mas nunca falamos. Mesmo hoje, quando muitas mulheres publicam romances, raramente encontramos personagens femininas de aspecto físico desagradável ou medíocre, incapazes de amar os homens ou de serem amadas por eles. Muito pelo contrário, as heroínas contemporâneas amam os homens, os encontram com facilidade, transam com eles em dois capítulos, gozam em quatro linhas e adoram sexo. (...) Prefiro aqueles que não conseguem o que querem pela boa e simples razão de que eu mesma não consigo. E porque, em geral, o humor e a inventividade estão do nosso lado. Quando não temos do que nos gabar, somos, na maioria das vezes, mais criativos. Como mulher, sou mais King Kong do que sou Kate Moss. Sou esse tipo de mulher com que não se casa, como quem não se faz filhos; falo desse meu lugar feminino sempre de maneira excessiva, muito agressiva, muito barulhenta, muito gorda, muito brutal, muito peluda, sempre muito viril, como me dizem. Mas são justamente essas minhas qualidades viris que fazem com que eu seja mais do que um mero caso de exclusão social no meio de tantos outros. Tudo que eu amo na minha vida, tudo que me salvou até aqui, devo à minha virilidade. Escrevo daqui como uma mulher inapta a atrair a atenção masculina, a satisfazer o desejo masculino e a me contentar com um lugar à sombra. É daqui que escrevo, como uma mulher não sedutora mas ambiciosa, atraída pelo dinheiro que ganho sozinha, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela cidade mais do que pelo campo, sempre excitada pelas experiências e incapaz de me satisfazer apenas com a descrição que me fazem delas. Eu não me importo de parecer dura com os homens que não me fazem sonhar. Não me parece nem um pouco óbvio que as meninas sedutoras se divirtam tanto assim. Sempre me senti feia, e me sinto confortável com o fato de que isso tenha salvado de uma vida de merda, aguentando caras simpáticos que nunca teriam me levado mais longe do que à porta de casa. Sou feliz comigo desse jeito, mais desejante que desejada. Escrevo então a partir deste lugar, das não vendidas, das complicadas, das que têm a cabeça raspada, das que não sabem se vestir, das que têm medo de cheirar mal, das que têm os dentes podres, das que não sabem como se comportar, das que não ganham presentes dos homens, das que transariam com qualquer pessoas que as quisesse, das putonas, das putinhas, das mulheres de buceta sempre seca, das que são barrigudas, das que queriam ser homens, das que acham que são homens, das que sonham em ser atrizes pornô, das que não dão a mínima para os caras mais que se interessam pelas suas amigas, das que têm bunda grande, das que têm pelos duros e bem pretos e que não se depilam, das mulheres brutais, barulhentas, daquelas que quebram tudo o que encontram pela frente, das que não gostam de cosméticos, das que usam batom excessivamente vermelho, das que são muito feias para se vestirem como gostosonas mas que morrem de vontade de fazê-lo, das que querem usar roupas masculinas e barba na rua, das que querem mostrar tudo, daquelas que são pudicas por serem complexadas, das que não sabem dizer não, das que são presas para que possam ser domesticadas, das que dão medo, das que provocam pena, das que não provocam inveja, das que têm a pele flácida, a cara cheia de rugas, das que sonham em fazer um lifting, uma lipoaspiração, uma plástica de nariz mas que não têm dinheiro para tanto, das que estão acabadas, das que não têm nada que as proteja a não ser elas mesmas, das que não sabem proteger, das que são indiferentes aos filhos, dessas que gostam de beber nos bares até caírem no chão, das que não sabem manter as aparências; mas também escrevo para os homens que não sentem vontade de serem protetores, para os que gostariam de sê-lo mas não sabem como, para os que não entram em disputas, os que choramingam à vontade, os que não são ambiciosos ou competitivos nem são bem dotados ou agressivos, para os que têm medo, os tímidos, os vulneráveis, os que preferem cuidar da casa a sair para trabalhar, os que são delicados, carecas, muito pobres para reclamar, para os que têm vontade de dar o cu, os que não querem que a gente conte com eles, aqueles que de noite, sozinhos, têm medo. Porque o ideal de mulher branca, sedutora mas não puta, bem casada mas não nula, que trabalha mas sem tanto sucesso para não esmagar seu homem, magra mas não neurótica com comida, que continua indefinidamente jovem sem se deixar desfigurar por cirurgias plásticas, uma mamãe realizada que não se deixa monopolizar pelas fraldas e pelos deveres de casa, boa dona de casa sem virar empregada doméstica, culta mas não tão culta quanto um homem; essa mulher branca e feliz, cuja imagem nos é esfregada o tempo todo na cara, essa mulher com a qual deveríamos nos esforçar para parecer - tirando o fato de que elas devem ficar de saco cheio com qualquer coisa -, devo dizer que jamais a conheci, em lugar algum. Acredito até que ela nem mesmo exista. Virginie Despentes - Teoria King Kong


segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Ele não era "louco", ele era machista.

Faz só dois dias que entramos em 2017 e hoje mesmo eu ouvi de um cara que a Lei Maria da Penha beneficia demais as mulheres - sim, ainda existe homem dizendo isso. Ele mesmo foi indiciado pela mulher porque ligou pra ela informando que ia 'invadir' a casa pra ver o filho (ele não teve nem a capacidade de dizer de outro jeito).
Em Caxias do Sul/RS, uma mulher de 37 anos foi estuprada por NOVE homens na virada do ano, por conta de dívidas do ex-marido, mas o jornal Pioneiro, olha aqui, deu a matéria como SUPOSTO ESTUPRO. Suposto! Até quando? Casamentos abusivos, até quando?
Um homem assassina a mulher, o filho e a família dela, escreve uma carta machista, misógina, feminicida e o que que acontece? A gente continua lendo a carta, que se multiplica nos comentários de outros milhares de homens que escrevem e se comportam exatamente como o assassino.

Não vou reproduzir aqui todos os comentários que estavam colados nesse próprio print, mas eles, infelizmente, estão por toda parte, em qualquer das reportagens

Não preciso nem listar todas as mortes e estupros de mulheres só em 2016, aquelas que ficaram bem famosas pelos níveis hediondos de crueldade e "loucura" dos homens assassinos. Empalamentos, estupros coletivos, facadas, degolamento. Cada um dos comentários acima relembra e revive a morte de todas essas mulheres que foram assassinadas por homens pelo fato de serem mulheres. Edmilson diz "não sei se ele está certo ou errado, também já tive vontade de matar..." André Luiz "Maria da Penha é falha! Homens tbm são vítimas..." é tão triste e chocante perceber que é isso o que grande parte dos homens pensa: "eu também sou vítima". Vítima do quê? 


Homem não é assassinado por grupos de mulheres estupradoras. Homem não é empalado, esfaqueado porque estava esperando um filho. Esses homens se sentem vítimas porque não podem mais, tão facilmente, assassinar uma mulher sem que ela lute pela vida; esses homens se sentem vítimas das feministas que lutam para que, como mulheres, possamos viver. Porque eles são os homens que sequer gostam de mulheres, como bem escreveu a Mari aqui.  

Todos esses homens que comentaram atrocidades a respeito dessa tragédia feminicida multiplicam a carta do assassino. Todos esses homens, todos os dias, multiplicam comportamentos machistas, abusivos, agressivos contra mulheres. São os mesmos comentários de vários caras que entraram nesse blog mesmo, pra destilar ódio e machismo. São os mesmos comentários dos homens da tua família, dos teus colegas de trabalho, de todos aqueles que cruelmente seguem repetindo e acreditando que uma mulher "pede" pra ser estuprada; que o problema do feminismo são "as feministas"; que o problema é "ver machismo em tudo"; que as mulheres, a Dilma, a Maria da Penha, eu, minha vó, tua mãe, tua filha são todas umas vadias e que o homem é a verdadeira vítima de tudo isso. A gente sabe o que significa um misógino dizer isso. Não é o mesmo que escreveu a Clara, maravilhosa, aqui.  São exatamente os mesmos caras que não assumem o filho quando uma mulher engravida. Que abandonam, fogem ou, pior, talvez, vivem junto com a mulher, no velho e acabado matrimônio tradicional, à base de violência, como bem disse a nossa musa maravilhosa, Monique Prada:


Os crimes que têm acontecido não são uma "loucura". Loucura é estarmos vivas e fortes, ainda, apesar de todas as expressões de ódio, aniquilamento, descrédito, dúvida em relação à mulher como o outro a que se quer extinguir. Vamos parar com isso de dizer que machismo não é tão grave assim e que feminicídio é "loucura". Que não tenhamos descaso com o que produz violência de gênero.