quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

sou mais king kong do que sou kate moss

Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça. E começo assim para que tudo fique claro: não me desculpo de nada, não vim aqui para reclamar. Não trocaria de lugar com ninguém, porque ser Virginie Despentes me parece um assunto muito mais interessante do que qualquer outro. Me parece formidável que também existam mulheres que gostem de seduzir, que saibam seduzir, e outras que saibam casar; que existam mulheres que cheirem a sexo e outras à merenda dos filhos que saem do colégio. Formidável que existam algumas muito doces, outras realizadas em sua feminilidade; que elas sejam jovens, muito bonitas, ou coquetes e radiantes. Francamente, fico muito por todas aquelas a quem convêm as coisas como estão. E digo isso sem menor ironia. Eu, simplesmente, não sou uma delas. Com certeza não escreveria o que escrevo se fosse linda, linda o suficiente para mudar a atitude de todos os homens que cruzam o meu caminho. É do ponto de vista de uma proletária da feminilidade que falo, que falei ontem, e que recomeço hoje. (...) Fico louca de raiva quando, na condição de mulher que interessa pouco aos homens, as pessoas tentam me convencer, sem parar, de que eu não deveria nem mesmo existir. Nós sempre existimos. Mesmo que nunca se fale de nós nos romances escritos por homens, que eles só consigam imaginar mulheres com as quais gostariam de transar. Nós sempre existimos - mas nunca falamos. Mesmo hoje, quando muitas mulheres publicam romances, raramente encontramos personagens femininas de aspecto físico desagradável ou medíocre, incapazes de amar os homens ou de serem amadas por eles. Muito pelo contrário, as heroínas contemporâneas amam os homens, os encontram com facilidade, transam com eles em dois capítulos, gozam em quatro linhas e adoram sexo. (...) Prefiro aqueles que não conseguem o que querem pela boa e simples razão de que eu mesma não consigo. E porque, em geral, o humor e a inventividade estão do nosso lado. Quando não temos do que nos gabar, somos, na maioria das vezes, mais criativos. Como mulher, sou mais King Kong do que sou Kate Moss. Sou esse tipo de mulher com que não se casa, como quem não se faz filhos; falo desse meu lugar feminino sempre de maneira excessiva, muito agressiva, muito barulhenta, muito gorda, muito brutal, muito peluda, sempre muito viril, como me dizem. Mas são justamente essas minhas qualidades viris que fazem com que eu seja mais do que um mero caso de exclusão social no meio de tantos outros. Tudo que eu amo na minha vida, tudo que me salvou até aqui, devo à minha virilidade. Escrevo daqui como uma mulher inapta a atrair a atenção masculina, a satisfazer o desejo masculino e a me contentar com um lugar à sombra. É daqui que escrevo, como uma mulher não sedutora mas ambiciosa, atraída pelo dinheiro que ganho sozinha, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela cidade mais do que pelo campo, sempre excitada pelas experiências e incapaz de me satisfazer apenas com a descrição que me fazem delas. Eu não me importo de parecer dura com os homens que não me fazem sonhar. Não me parece nem um pouco óbvio que as meninas sedutoras se divirtam tanto assim. Sempre me senti feia, e me sinto confortável com o fato de que isso tenha salvado de uma vida de merda, aguentando caras simpáticos que nunca teriam me levado mais longe do que à porta de casa. Sou feliz comigo desse jeito, mais desejante que desejada. Escrevo então a partir deste lugar, das não vendidas, das complicadas, das que têm a cabeça raspada, das que não sabem se vestir, das que têm medo de cheirar mal, das que têm os dentes podres, das que não sabem como se comportar, das que não ganham presentes dos homens, das que transariam com qualquer pessoas que as quisesse, das putonas, das putinhas, das mulheres de buceta sempre seca, das que são barrigudas, das que queriam ser homens, das que acham que são homens, das que sonham em ser atrizes pornô, das que não dão a mínima para os caras mais que se interessam pelas suas amigas, das que têm bunda grande, das que têm pelos duros e bem pretos e que não se depilam, das mulheres brutais, barulhentas, daquelas que quebram tudo o que encontram pela frente, das que não gostam de cosméticos, das que usam batom excessivamente vermelho, das que são muito feias para se vestirem como gostosonas mas que morrem de vontade de fazê-lo, das que querem usar roupas masculinas e barba na rua, das que querem mostrar tudo, daquelas que são pudicas por serem complexadas, das que não sabem dizer não, das que são presas para que possam ser domesticadas, das que dão medo, das que provocam pena, das que não provocam inveja, das que têm a pele flácida, a cara cheia de rugas, das que sonham em fazer um lifting, uma lipoaspiração, uma plástica de nariz mas que não têm dinheiro para tanto, das que estão acabadas, das que não têm nada que as proteja a não ser elas mesmas, das que não sabem proteger, das que são indiferentes aos filhos, dessas que gostam de beber nos bares até caírem no chão, das que não sabem manter as aparências; mas também escrevo para os homens que não sentem vontade de serem protetores, para os que gostariam de sê-lo mas não sabem como, para os que não entram em disputas, os que choramingam à vontade, os que não são ambiciosos ou competitivos nem são bem dotados ou agressivos, para os que têm medo, os tímidos, os vulneráveis, os que preferem cuidar da casa a sair para trabalhar, os que são delicados, carecas, muito pobres para reclamar, para os que têm vontade de dar o cu, os que não querem que a gente conte com eles, aqueles que de noite, sozinhos, têm medo. Porque o ideal de mulher branca, sedutora mas não puta, bem casada mas não nula, que trabalha mas sem tanto sucesso para não esmagar seu homem, magra mas não neurótica com comida, que continua indefinidamente jovem sem se deixar desfigurar por cirurgias plásticas, uma mamãe realizada que não se deixa monopolizar pelas fraldas e pelos deveres de casa, boa dona de casa sem virar empregada doméstica, culta mas não tão culta quanto um homem; essa mulher branca e feliz, cuja imagem nos é esfregada o tempo todo na cara, essa mulher com a qual deveríamos nos esforçar para parecer - tirando o fato de que elas devem ficar de saco cheio com qualquer coisa -, devo dizer que jamais a conheci, em lugar algum. Acredito até que ela nem mesmo exista. Virginie Despentes - Teoria King Kong


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