Eu devia ter uns 22 anos, cursava um curso de graduação de uma conceituada universidade federal (a qual tive acesso por cursar colégio particular e cursinho), morava na casa da minha mãe (que sempre me apoiou e me ajudou financeira e emocionalmente quando necessário), era bolsista de iniciação científica (podia me dar esse luxo de ter treinamento acadêmico/científico e ainda ganhar na época 200 pilas por mês pra fazer festa), dava aulas de inglês sem carteira assinada para ganhar um pouco de cancha no mercado de trabalho antes de me formar e tava há pouco mais de dois meses com o primeiro namorado sério. Ia me formar no mesmo ano, tinha tudo para ingressar no mestrado no ano seguinte, começar a trabalhar com carteira assinada e começar minha carreira de mulher bem-sucedida-indepente-moderna-etc. Tinha parado de tomar pílula porque achava que ficava inchada demais com os hormônios.
Um dia, eu e meu namorado
transamos sem camisinha. Tomei a pílula do dia seguinte. Tudo certo. Depois de
um mês, rolou de novo. Ah, que ingênua transar sem camisinha. Ah, que puta. Ah,
que irresponsável. Que atire a primeira pedra quem nunca. No calor da hora, com
excitação a mil e namorado insistindo é difícil dizer não. É bem difícil. Ah,
amor, toma a pílula do dia seguinte de novo. Tomei. Duas semanas depois, nada
de menstruação. Um mês depois, nada de menstruação. Tontura, enjoo, vômito,
cólica. Ah, é psicológico, diziam os amigos dele. Fiz o exame. Deu
“indefinido”. Uma semana depois, tava lá, a verdade escrachada na minha cara.
Positivo. Positivo. Positivo. CARALHO. Não podia ser real. Mas era. Positivo.
Positivo. Positivo. Aquilo não podia tá acontecendo comigo. Não podia. Ter o/a
bebê nunca passou na minha cabeça. Eu não queria ser mãe naquele momento. Não
queria. Não tava pronta praquilo. Não queria. Não me via naquela posição.
Liguei pro namorado. Chorando. Não acreditava. Ele não acreditava. Eu já tinha
a minha decisão. Eu queria abortar. Eu não queria ser mãe. Não queria não
queria não queria. Falei pra ele que queria abortar. Ele também queria que eu
abortasse. Mas o importante pra mim sempre foi que essa era uma decisão minha.
Só minha.
Falei com minha ginecologista e
ela me recomendou um cara que atendia pessoas de classe média na minha cidade.
Custava R$1.500,00 na época. Sei lá quanto é hoje. Isso uns 10 anos atrás. Eu
tinha dinheiro. Meu namorado tinha dinheiro. Minha mãe tinha dinheiro. Os pais
do meu namorado tinham dinheiro. Meu namorado fez questão de dividir comigo o
custo. Lembro até hoje do momento em que eu tive que contar pra minha mãe. Senti
vergonha. Disse que eu e ele partiríamos o custo. Ela disse que queria dividir
também. Ficou 500 pra cada um. Eu tinha gente que me apoiava. Emocional e
financeiramente.
O consultório do cara era lindo.
Chão de granito. Máquina de café gostoso free pros acompanhantes. Mulheres
lindas e bem arrumadas com suas filhas bonitas, magras e bem-vestidas. Eu, bem
vestida. Com meu namorado bonito, bem vestido. Fomos pra lá no carro dele. Eu
não tive medo de morrer ou ficar doente ou de não conseguir engravidar nunca
mais. Eu tive medo de ser presa. E de não “apagar” com a anestesia. Essas duas
coisas apareciam no meu sonho de modo intercalado.
Depois do procedimento eu acordei
vestida, dormindo num sofá. Não lembrava onde tava. Tava meio grogue. Vomitava
sem parar. Discuti com a “enfermeira”. Queria meu namorado. Queria um abraço.
Não parava de vomitar. Eu tinha que sair da sala porque tinha outra menina que
precisava deitar ali. Eu não tava pronta pra sair. Fomos pro apartamento da
minha mãe. Minha mãe ligou, meu orientador ligou. As pessoas se preocuparam
comigo. Minha gineco ligou também.
Eu era uma menina de classe média
e descobri que o custo pro procedimento era o de em torno de 10 minutos do
tempo do médico e de uma enfermeira, a tal anestesia que te faz dormir e um
leito por tipo uma hora. Eu paguei 1500. Cara, paguei 1500 por uma coisa
ridícula. Eu tinha 1500. Eu tinha uma mãe que não me julgava e um namorado que
me apoiou. Eu tinha uma família esclarecida, que nunca me julgou.
Olhando pra trás não consigo não
pensar nas milhares de meninas que não tem uma família que dá apoio emocional
ou que dá apoio emocional, mas não tem como ajudar financeiramente. Ou que tem
um namorado escroto que tá cagando pra saúde e segurança da menina. Eu não
consigo parar de pensar nisso. Não tive nenhuma doença depois disso. Deu tudo
certo. Tudo certo. Graças a deus? Não. Graças ao dinheiro que minha família e
as pessoas que me amavam tinham. Graças a esclarecimento que todos tínhamos de
que a mudança no meu corpo e na minha vida eram, sim, uma escolha minha. E que
eu tinha dinheiro pra isso. E as meninas que não tem? Ninguém deixa de abortar
porque não tem dinheiro. Quem não tinha os 1500 na época pagava 10, ou 5 e ia num
açougueiro qualquer. Ou enfiava uma agulha de tricô pra dentro. Eu não precisei
disso, mas muitas meninas precisaram.
O custo do aborto seguro e limpo
e sem consequências pra vida da mulher é muito baixo. Mas custa caro porque é
ilegal. É um privilégio. Ter direito de ter saúde é pras mulheres que tem
dinheiro. Até quando? Vamos falar sobre aborto.
Relato enviado por leitora, como contribuição espontânea ao blog e ao movimento pela descriminalização da interrupção voluntária da gravidez. #preciamosfalarsobreaborto