terça-feira, 23 de junho de 2015

sororidade

A primeira vez que eu ouvi falar de sororidade achei a coisa mais incrível do feminismo! Eu estava começando a pensar sobre questões feministas e me incomodava muito com aquela ideia ridícula de que mulheres competem umas com as outras, que mulheres não são amigas de verdade e essa palhaçada toda que é produto pra piada barata de gente escrota. Eu achava que essa história das mulheres serem inimigas era o pior do machismo e que a sororidade ia salvar tudo!! Oin, pobi feminista inocente!


O que acontece não é que a sororidade é uma coisa ruim, é só algo que se perde nesse mar de gente, ideias, correntes, teorias, privilégios... A sororidade tem sido seletiva, uma palavrinha usada quando é conveniente. Pior de tudo, a sororidade virou privilégio.

Frase mais comum em comentários de páginas feministas: mais sororidade, por favor. Gente, ficar "pedindo" mais amor, mais sororidade, mais empatia, mais abraço, mais sei lá o que, não significa nada! Sororidade não é essa cartinha coringa aí que pode ser usada a qualquer hora pra vencer o jogo. E sabe quem mais pede sororidade?? Quem normalmente é apontada como racista, como silenciadora, como privilegiada. Pode procurar em qualquer debate feminista por aí, toda vez que uma guria negra apontar uma guria branca como racista, alguma branca vai dizer "mais sororidade, por favor". Quando uma guria gorda diz que sofre mais preconceito que uma guria magra, uma guria magra vai dizer "mais sororidade, não diminua minha dor". Purfa, menas, né migas!!


Sororidade não é amar todas as mulheres acima de todas as coisas. Não é engolir insulto de mina. Não é caminhar de mãos dadas com todas as gurias sem filtro nenhum. Não é amar mulheres e odiar homens. Sororidade também é brigar, criticar, apontar erros, criar incômodos. Afinal, a gente não muda se só passam a mão na nossa cabeça, o que seria uma atitude condescendente. 

Ser mulher é apenas uma das coisas que nos formam como sujeitos nesse mundinho. E tem ainda um monte de jeito de ser mulher. E mais umas mil coisas que não tem a ver com ser mulher necessariamente. Tem gente que acha que a sororidade serve pra gente achar que toda mulher é gente boa e se ela fez algo de "errado" é porque foi influenciado pelo patriarcado, foi oprimida por um omi, foi vítima do machismo. Como já falamos aqui, a mulher não é obrigatoriamente vítima só por ser mulher. E a sororidade não existe pra "salvar" ninguém.


Uma das primeiras decisões que tomei como feminista foi parar de falar mal de minas. Ainda acho essa uma ótima decisão, porque a gente reproduz um monte de merda quando fica falando mal das gurias a nossa volta. Sem querer somos machistas, culpamos a guria por tudo e acabamos falando mal só das minas mesmo e esquecemos dos minos. Mas essa decisão não pode ser cega. Tu não vai parar de falar mal da guria só porque ela é guria, mas porque tu vai olhar pra ela de uma outra forma, tentar te livrar de falas prontas e discursos machistas.

Assim como tu vai parar de falar mal de caras. Porque sororidade não é uma questão de aceitar passivamente todas as ações femininas, mas de prestar atenção sobre o que se pode ensinar e aprender juntas - talvez esse seja o amor envolvido na sororidade. Isso não significa parar de enxergar negatividades em posturas individuais, mas sororidade tem a ver com um pensamento sobre as positividades conjuntas. 

Tem muito guria que reproduz discurso machista, que é racista, transfóbica, que não enxerga para além do seu umbiguinho branco/magro/rico e não merece tanta consideração assim, não! Tem muito mina que não sabe ser amiga mesmo.  E isso não tem nada a ver com ser mulher ou não, são outros arranjos de vida, outros entrecruzamentos que não podem ser esquecidos no feminismo. 

A sororidade é uma parte MUITO importante do feminismo, que nos ajuda a desconstruir várias formas prontas do que é ser mulher dentro de uma visão restrita e machista de mundo. Faz a gente saber que não existe essa história de MULHER não é amiga, MULHER é invejosa, MULHER é puta. Assim como, a sororidade não pode trazer a ideia de que MULHER é maravilhosa e sempre digna de respeito apenas por ser MULHER. Dá pra entender? Se estamos desconstruindo o que é ser mulher e tirando o gênero de caixinhas, porque vamos criar uma nova caixa? Nunca é produtivo reduzir uma pessoa ao seu gênero. Nunca é produtivo se calar em nome de um "amor" que não suporta críticas.

terça-feira, 16 de junho de 2015

feminismos, para além das correntes

Se as sociedades se mantêm e vivem, isto é, se os seus poderes não são "absolutamente absolutos", é porque, por trás de todas as aceitações e coerções, mais além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade desse momento em que nada mais se permuta na vida, em que os poderes nada mais podem e no qual, na presença dos patíbulos e das metralhadoras, os homens se insurgem. Foucault (1979)


Desculpem entrar de joelhaço nessa história, mas com a ajuda do Foucault em alguns dos seus textos anárquicos e dureza, a gente pode começar a pensar um pouquinho sobre um conceito que consideramos bastante importante para falar de feminismo: a noção de poder. Numa série de seus últimos textos (As malhas do poder, O olho do poder, É inútil revoltar-se?), Foucault debate a ideia de que poder não é vertical, de uns sobre os outros, daqueles que podem e dos que não podem; dos assujeitados e dominados de um lado; dos dominantes, exploradores, assujeitadores, de outro. Não, não, nada disso amigues.

Poder nesses textos tem a ver com algo que nos interessa muito para pensar sobre os perigos da noção de mulher e de feminismo: de que modos o poder nos produz? Não pela negação, proibição, assujeitamento, dominação, censura, mas pela produtividade das relações em que poderes estão em exercício.

Consideramos muuuuitoooo importante partir do entendimento, em primeiro lugar, de que não são os omi ou o dito cujo patriarcado que submetem as pobres coitadas das mulherezinhas, oprimidas e exploradas pelos seus exploradores malvados. Consideramos também que as mulheres, como corpo social - e não individual, aliás - resistem e exercem poder (ao mesmo tempo) em termos de produtividades e não de assujeitamentos. Mulher não é explorada e ponto. Dominada e ponto. Nascida pra ser odiada (?!). Não é pré requisito ter vagina para ser mulher. Mulher não é um ser biológico. Mulher exerce poder porque nenhum poder é "absolutamente absoluto". Parece óbvio isso? Tem gente por aí confundindo as coisas; tem gente que anda dizendo que o sexo biológico "influencia" a tua "socialização" e te faz ser odiada, caso tu nasça com uma vagina. 




E ganhou TREZE curtidas. Que papo é esse de "no feminismo radical"? Que feminismo é esse, gente? Existe mulher e homem, só, gente nascida no discurso científico pra ser odiada ou odiante? E aí tu diz que esse monte de confusão é "o patriarcado". E que o tal do feminismo radical se fundamenta nisso? Quer dizer então que ser mulher e ser homem é um fato biológico que "influencia" a tua "socialização" no mundo para ser odiada = mulher e explorador = homem? Sério mesmo? Então trans não existe porque as feministas radicais que foram colocadas nesse balaio entorpecente definiram que pessoas trans não existem? Aí, me pergunto: pra que serve esse tal de feminismo radical mesmo, se mulher é quem tem vagina e está condenada a arder pelos sete reinos da tristeza e da dominação? Essas afirmações todas nos parecem simplificar as relações das mulheres com o poder. 


Pra que(m) serve uma verdade binária e vertical, que usa as palavras "opressão", "patriarcado", "dominação" e "exploração" como se fossem simples e tivessem um único registro nos diferentes arranjos que as produziram, em tantas histórias da mulher? Nós nos cansamos de certos enunciados de um certo feminismo radical. Nós, nesta página, nos posicionamos contra qualquer tipo de visão vertical nas relações entre pessoas. Nós consideramos as relações de poder muito mais complexas do que o pode e o não pode; os malvados opressores e os pobres oprimidos. Que tal a gente parar de afundar nessa mistura de velhas palavras-chave pra dizer coisas como essa aqui embaixo?



Não sabemos o que essa pessoa andou lendo; o que orienta essa discussão? O que pode significar, no mundo, um movimento que se considera necessariamente transfóbico? Não sabemos que produtividades são provocadas em se opor binária e verticalmente à construção de identidade de gênero. Identidades de gênero não são delírios pós-modernos, mas construções sociais, na relação do eu com o outro e com todas as possibilidades de arranjos afetivos, sexuais etc. 

Além de não estarmos alinhadas ao feminismo radical, também não achamos nada produtiva essa história de correntes do feminismo. Isso só serve pra criar mais caixinhas fixas e pensamentos prontos. Não pertencemos a nenhuma corrente, feminismo não é se filiar a um partido, ir num clubinho e receber um crachá, não tem essa história de "não aceito homem cis", "não aceito trans", "não aceito pipipi", não existe uma porta que a gente fecha e vive num mundo só com as pessoinhas por nós selecionadas. Pra quem se diz feminista e que não quer ter sua vida determinada por uma série de ideias prontas do que é ser mulher, também não pode sair criando categorias para os outros e se fechando num mundinho "radical".

Tem um pequeno detalhe que faz toda a diferença quando pensamos em movimentos como feminismo: como já dissemos, não existe uma "pessoa" que só oprime e uma outra que é só oprimida. "Opressão" é um jogo, é relação, não é algo preestabelecido e fixo. É um jogo tão móvel que talvez "opressão" nem seja mais a palavra exata pra pensarmos as relações.



Aí a pessoa aí em cima diz que não tem como algo ser fruto de opressão e oprimir ao mesmo tempo. Miga, TEM SIM! É exatamente assim que funciona o mundo!! O feminismo radical parece ver a mulher (ser portador de vagina e útero) como uma criatura coitada, totalmente explorada pelos homens, escrava sem saída. Mas se é assim, o que a gente está fazendo aqui? Se somos mulheres e não temos opção a não ser sermos oprimidas pelo patriarcado, que produtividade teria o feminismo? Ou ainda: o que possibilita a existência mesma do feminismo?


Para pessoas que pedem sororidade (tema importantíssimo para um próximo texto!!), empatia, apoio e todo tipo de solidariedade, o preconceito tá rolando solto:



Olha que grande constatação! A teoria queer é uma ferramenta dos homens para manipular as mulheres e destruir o feminismo! Eu adoro uma teoria da conspiração, mas pelamordadeusa!! Além disso, mulher trans é um cara que gosta de usar saia uma vez por semana. E mais ainda: o macho ganha acesso livre ao feminismo! O feminismo tá parecendo uma sociedade secreta que se esconde num prédio antigo e só alguns tem a senha para acessar todos os andares.

Para além do certo e do errado, do bem e do mal, do binarismo, da fixidez e das correntes, que tal ampliarmos um pouco a discussão sobre as poderosas e resistentes relações? Que tal pensarmos sobre os modos em que se produzem violências, desigualdades, conquistas, direitos, discursos das/sobre as mulheres? 

Mas então, Era uma vez outra mulher, o que é o feminismo?

1. Para de perguntar o que é e pensa sobre as relações que fazem com que o feminismo exista.

2. Pessoas exercem poder e resistem a ele, simultaneamente. Um morador de rua, uma criança, uma homem loiro alto e rico e uma mulher. Qualquer mulher, em variadas relações com hegemonias.

3. Ser mulher envolve construção de identidade de gênero. Então, não há uma única forma de ser mulher. Vamos tomar cuidado, amigXs, ao dizer que uma mulher trans é um homem opressor de saia que vai pra USP pela zoeira. 

4. Feminismo não é sobre odiar homens já que, como uma força de pensamento, é sobre corpo social e não seres individualizados em suas totalidades. 

5. Esse texto não é um delírio pós-moderno. Esse texto não é apenas sobre feminismo, mas sobre um certo modo de pensar. Falar de relações de poder do modo como optamos fazer aqui, não é negar a violência, o preconceito contra identidades de gênero, a dor e o sofrimento relacionados ao machismo. O feminismo é amplo o suficiente para pensarmos em espaços da mulher para além das verticalidades, dos velhos paradoxos e binarismos. Para além das correntes, pensamos que lutar pelos direitos das mulheres tenha mais a ver com ampliar nosso entendimento da complexa relação social em que nos inscrevemos.