quinta-feira, 6 de outubro de 2016

o mais profundo é a pele

Recentemente, eu li um livro que se chama "O Rosto de um Outro", do Kobo Abe. Conta a história de um cara que sofreu um acidente no seu laboratório e ficou com um rosto sem forma. Ele decide fazer uma máscara que imita um rosto para cobrir-se. A partir do momento em que ele começa a usar essa máscara, a sua personalidade muda completamente. Ele percebe que não tem como ter a mesma personalidade que sempre teve com um rosto diferente. Mudar o cabelo, mudar o formato do nariz, mudar a barba, tudo isso significou mudar quem ele era no mundo.

- Mas não há nada de errado em atribuir maior valor ao conteúdo do que à aparência, há?

- Prezar um conteúdo que não tem o respectivo recipiente...? Não confio muito nisso... Creio com firmeza que a alma humana reside na pele, sabe?

- Claro, metaforicamente falando...

- Não tem nada a ver com metáfora... - disse K em tom calmo mas categórico. - A alma humana está na pele... Acredito nisso literalmente. 


Eu mudei muito a minha aparência nos últimos anos. Quem me conheceu há cinco anos, por exemplo, e nunca mais me viu, pode passar reto por mim na rua sem me reconhecer. Isso me incomoda muitas vezes. Mas aí eu me pergunto: se eu mudei tanto o que eu penso, o que eu gosto, o que eu quero, como não mudaria de aparência?

Um dos impactos mais importantes do feminismo na minha vida foi a minha relação com dietas. Eu fazia dieta desde os 12, 13 anos. O que acontece com uma pessoa que fazia dietas loucas há mais de 10 anos, passava muita fome e de repente para com tudo isso? Sim, essa pessoa engorda! E eu engordei muito! Essa foi uma das maiores mudanças na minha aparência. Eu passei de alguém que se matava pra usar uma calça 40, 42, pra alguém categorizada como "plus size". Essa decisão me persegue todos os dias. Eu preciso me lembrar todos os dias porque não faço mais dieta e como não é ruim eu ser gorda. Eu, hoje, não conseguiria ser feminista e magra. 

"mas eu faço dieta porque é melhor pra mim, eu me sinto melhor magra e isso não me faz menos feminista". Hmm... olha, isso é bem problemático. Se tu é feminista tu sabe o que significa uma mulher fazendo dieta pra ficar magra, né?
"mas eu gosto de fazer dieta". Bah, daí tu tem que pensar sobre esses teus gostos. O que tu gosta nisso realmente?

Outra mudança constante na minha vida é o meu cabelo. Eu sempre gostei de cortar e pintar o cabelo, mas nunca tinha me dado conta como eu continuava dentro de uma zona de conforto sobre isso. Até que, ano passado, eu resolvi platinar meu cabelo. Aí eu tive várias cores diferentes e, além disso, um cabelo bem seco, bem sem forma, bem arrepiado, quebrado, e todas essas coisas que as propagandas de shampoo nos dizem que a gente não pode ter.

O cabelo platinado me fez ter outra relação com maquiagem. O que me levou a ter vontade de usar outros tipos de roupas. Usei saia justa e barriga de fora. Isso pra mim foi uma revolução! Quando eu era magra e passava fome, vivia me escondendo. Hoje, feminista e gorda, coloco a barriga pra fora bem feliz e me achando linda. Barriga e pernas cheias de celulite de fora, cabelo colorido e bagunçado, batom roxo. Tudo isso pode parecer bobo, mas foi uma experiência que me redefiniu.

Cabelo platinado e pneus na barriga não são só aparência. (Tu acha, por acaso, que o vestidinho azul de rendinha da Marcela Temer é só aparência, que não significa nada?). Tu não tem uma essência escondida por trás das tuas roupas e cortes de cabelo. Eu fui essencialmente uma pessoa loira platinada com barriga gorda de fora. O jeito que tu arruma ou deixa de arrumar o teu cabelo muda a tua relação com o mundo. E se tu não percebeu isso, de repente é porque tu tem exatamente o mesmo cabelo que sempre teve e acha que isso é o "normal", que o importante é o que "tá por dentro". Miga, o clichê pequeno-príncipe-o-essencial-é-invisível-aos-olhos precisa ser superado!
"mas eu aliso o cabelo e deixo ele comprido porque eu fico melhor assim". Miga, o que significa ficar melhor? Melhor pra quem? Melhor por quê?
"mas eu não gosto de pintar o cabelo, acho isso muito adolescente e superficial". Então acho que tu tá precisando de um cabelo verde nessa cabeça conservadora.

Não satisfeita com o impacto do cabelo loiro, eu resolvi cortar o meu cabelo bem curto. Fui aos poucos, até que cortei bem curtinho, tipo 1 cm de cabelo na cabeça. Foi um choque. Eu me achei horrível por vários dias. Claro, a minha ideia sobre a minha própria beleza ainda tava ligada a ter cabelo comprido, ter franja longa, ter o pescoço gordinho tapado por cabelo. Cabelo curto me deixou exposta demais. Me senti nua andando na rua. Nenhuma roupa ficava boa, nenhuma maquiagem combinava. Ficou mais difícil disfarçar o meu peso, as minhas bochechas, me fazer passar por uma guria "normal". Aí eu pensei: por que mesmo eu to querendo disfarçar alguma coisa? Que soco na cara que eu mesma me dei! E só por causa de um corte de cabelo.


E pra que eu contei essa minha saga de mudancinhas? Porque mudar "por fora" é tudo! Mudar o cabelo é mudar o que tu pensa sobre a vida. Parar de fazer dieta muda a tua relação com as pessoas, muda o que as pessoas pensam de ti, muda a forma como elas te tratam, muda as interações. Ser mulher e cortar o cabelo bem curto te coloca em outro lugar no mundo. Dá uma olhada como ficou a vida de gurias que decidiram parar de se depilar, por exemplo! Tu acha que elas têm os mesmos amigos de sempre, as mesmas ideias? A relação dessas gurias com feminismo, com pensamento, veio junto com a relação com o corpo, e é isso que eu estou defendendo aqui.

Quando alguém me diz que mudou muito o que pensa, mas continua exatamente com a mesma aparência, eu não acredito nessa pessoa. Não existe mudar por dentro. Não existe por dentro. Sim, eu to dizendo aqui que é pra julgar o livro pela capa.

Se eu posso dar algum conselho nessa vida seria esse: muda essa cara que tu carrega há anos! Muda radicalmente teu cabelo, teu peso, tuas roupas. Te desafia a ser diferente de ti mesmo constantemente. Mudar assim significa se conhecer muito também. Tu precisa te conhecer e pensar muito sobre quem tu é pra mudar. E não existe também alcançar o lugar supremo da pessoinha desconstruída. Mudança é um processo constante. Tu não vai "chegar lá". E isso é assustador e empolgante.

A gente precisa explorar outras linhas de vida, outras possibilidades. As tuas relações com colegas de trabalho, família, eleições, feminismo, tudo isso passa pela tua aparência. Usar uma cor de batom diferente não é algo fútil, superficial, mas é algo que pode ser uma possibilidade diferente de vida pra ti. Parar de usar salto pra parecer mais alta pode mudar tudo que tu pensa sobre ti e sobre teus amigos. Ou então, trocar a rasteirinha velha de couro por um saltão pode ser justamente o que tu precisa pra sacudir as tuas certezas! Por que será que o empoderamento no feminismo negro passa por questões como usar o cabelo natural? É só aparência? É só futilidade? 

E quando eu digo pra mudar, é pra mudar mesmo! Mudar pra ti e pro mundo! Não adianta mudar para se encaixar mais ainda num padrão de normalidade de existência. Te coloca em risco, abre mão dos teus confortos, te destrói e reconstrói e destrói de novo. E não espera um fim nisso tudo. E para de dizer que o importante é o que tá por dentro. Mudar radicalmente o que tu é pra ti mesma é te colocar no mundo, é aparecer, é parar de operar com as mesmas velhas, cansadas, desgastadas, mofadas, pálidas linhas de "normalidade" de sempre. 

2 comentários:

  1. Impossível ler o teu texto e não sentir esse soco no estômago. Obrigada por compartilhar isso. Vou ler cem vezes esse texto. algumas coisas precisam ser lidas mil vezes. Alguns medos estão tão profundamente colados.

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  2. Adorei o texto, Ananda! Entender que não precisamos ficar presas a padrões e ideais é relativamente fácil (principalmente em nossos círculos sociais, e pelo simples acesso à informação que nós temos). Com o tempo fui notando que difícil não é ser desconstruidona que SABE que gordofobia, opressão estética, racismo são paradas super erradas e que devemos repensar. O difícil é realmente mudar, não ficar neurótica porque as amigas são mais magras, fazer exercícios físicos pela saúde mesmo, e não porque as pessoas pararam de "elogiar" pela magreza e começaram a criticar pelos 5 quilos a mais. Difícil não é ficar com o cabelo cacheado, difícil é não se preocupar que naquele dia ele está sem definição e com frizz. Difícil não é entender que eu não preciso usar maquiagem todos os dias, mas ficar morrendo de vergonha de encontrar alguém no supermercado quando eu estou sem e com as manchas de espinha à mostra. Enfim, difícil mesmo é mudar de dentro pra fora.

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