segunda-feira, 22 de setembro de 2014

ruído

Saio às 6h55 de casa carregando duas bolsas com materiais de aulas, pastas, provas dos alunos, livros, apagador e canetas. Vou de ônibus para a escola, é bem perto, chego em 15 min.

Entro no ônibus e dentro dele só tem homens. O ônibus não está lotado, posso escolher vários lugares, vários lugares do lado de vários homens. Os homens estão todos olhando pra mim aguardando a minha escolha. Qual desses que essa guria quer. Não posso pensar muito tempo, a escolha deve parecer natural. Crio uma lógica que não faz sentido para justificar a minha escolha pra mim. Sento do lado de um dos homens. Nem queria essa vadia do meu lado.

Percebo que esqueci de passar batom e meus lábios estão muito secos pelo vento que peguei na rua. Queria passar batom, será que posso passar batom? Tenho que ser discreta, nenhum desses homens pode ver meu batom. Passar batom é um convite. Venço o medo e passo o batom toda encolhida, quase com o rosto dentro da bolsa. Será que ele viu que eu passei batom? Ela só pode querer alguma coisa, mulher que passa batom no ônibus é porque quer alguma coisa.

Lido com o desconforto do banco, do ar, da tensão, dos medos, das neuroses, do peso das bolsas. Falta metade do caminho. Os dois bancos da frente ficam livres. Posso mudar de lugar, ficar sozinha, sem nenhum homem do meu lado, olhar pela janela, fazer de conta que não estou cercada de silêncios cheios de significado. Será que mudar de lugar não é pior? Mudar de lugar significa admitir o desconforto, o desconforto com a presença masculina do meu lado. Desconforto porque eu sou macho. Ficar no lugar significa estar gostando do desconforto. Ela não troca de lugar, ela me quer. Decido no impulso e troco de lugar. Fico de costas para o desconforto, mas ele não deixa de existir.


A próxima é a minha parada. Levanto, puxo a corda e aguardo de pé. Quando o ônibus para e abre as portas, ele levanta e sai comigo. Aquele que eu havia escolhido e depois recusado. Ele vai fazer alguma coisa, não havia feito nenhuma menção de que aquela era a sua parada, só levantou na última hora e foi atrás de mim. Vou atrás dessa vadia de batom. Ele segue atrás de mim por 5 min e dobra. Muda de direção sem nem olhar pra trás. 

by Ananda Vargas

3 comentários:

  1. Adorei, deveríamos fazer mais dessas narrativas, sobre esses medos silenciosos e silenciados.

    ResponderExcluir
  2. Ui Nanda..que medo. Pior que é bem assim!

    ResponderExcluir
  3. detalhe: "sem nem olhar pra traz". essa vadia qria q ele olhasse! kkkk

    ResponderExcluir