sábado, 4 de março de 2017

sobre girls, esquerdomachos e valorização de si

Tenho uma relação de amor e ódio com a série Girls. Quando comecei, eu me apaixonei pela Lena Dunham, fiquei chocada com o quanto ela mostra o corpo gordo e flácido e isso fez eu me sentir bem, sentir que eu podia fazer o que eu quisesse com o meu corpo também. Aprendi um monte de coisa com essa série e tive muita raiva da maioria dos personagens. Eu sei também que ela é uma série bastante branca e a Lena Dunham não é o exemplo de feminista a se seguir, mas, mesmo assim, acho que vale a pena assistir.



A sexta temporada começou recentemente e eu não estava nem um pouco empolgada, porque odiei a quinta. Mas hoje eu vi o terceiro episódio dessa nova temporada e fui obrigada a reconhecer que a Lena Dunham ainda tem muita coisa pra nos dizer. 

(A partir daqui vão ter milhões de spoilers do episódio. Esse não é o tipo de episódio que se pode estragar com spoiler, porque ele não é só sobre o que acontece. Então, tu que sabe da tua relação com essa história de ter pavor de spoiler)

A Hannah vai na casa de um escritor, e logo a gente descobre que ele chamou ela lá por causa de um texto que ela escreveu sobre ele num blog feminista. Algumas mulheres denunciaram esse tal escritor dizendo que ele estava se beneficiando da sua posição para transar com gurias na turnê do seu livro.

Esse tal esquerdomacho-escritor convidou a Hannah para contar o "seu lado" da história. Ele diz que não está conseguindo dormir, que está preocupado com o quanto essa história pode fazer mal a sua filha, que a vida dele está sendo arruinada por causa dos textos sobre ele. Ele quer convencer a Hannah que não ouve assédio, que ele é só um cara adulto convidando mulheres adultas para o seu quarto de hotel. A gente nunca ouviu isso de um cara antes, né?



No meio disso, ele atende o telefone e fala com a sua ex-mulher sobre a filha dos dois. Quando desliga o telefone, ele faz questão de dizer pra Hannah que a ex-mulher é uma desequilibrada, uma mulher problemática, mas que ele está sendo bem legalzão e tentando considerar ela uma boa mãe.

Esse episódio é tão cheio de mini detalhes que não tem como falar sobre tudo. O personagem do escritor usa todas as frases mais clássicas, se coloca em posição de vítima, de homem que sofre por não controlar seus impulsos e por não conseguir se relacionar com mulheres. Ele fica nervoso com o uso da palavra consentimento e diz que na sexualidade existem muitas "gray areas". Ahãn, claro!

Ele lê para Hannah o que ele escreveu sobre a mulher que fez uma das principais denúncias e é um texto tão nojento, tão machista, tão objetificador e redutor da mulher, mas ele lê como se não fosse nada, como se aquele texto provasse o quanto não teve nenhum assédio acontecendo.

A Hannah conta pra ele uma história de assédio que ela sofreu na infância pra tentar dar um exemplo pro machinho, pra ver se ele entendia o que era consentimento, o que significava ele chamar um guria que é fã dele pro seu quarto de hotel. Como todo bom esquerdomacho, ele entendeu essa história como algo particular, e se mostrou compadecido. 

O tempo todo em que eles conversavam, ele elogiou a Hannah, disse que só chamou ela (e não todas as outras que escreveram sobre ele) porque ela era inteligente e engraçada. Hannah é fã dele também. E não tem nada mais emocionante do que receber mil elogios do teu ídolo. Com tanto interesse nela, com tanto charme, rodeada de livros no apartamento absurdamente lindo do escritor, Hannah baixa sua guarda. Ela fala até o quanto gosta de Philip Roth, mesmo sabendo que não devia por ele ser muito machista. Ela até revela o quanto gostaria que alguém escrevesse sobre ela do jeito que Roth escreve sobre as mulheres, mesmo sabendo que isso só faria dela uma vadia objetificada. Hannah se despiu de todo o discurso feminista que estava defendendo muito ferozmente nos primeiros momentos do encontro com o escritor.

Como mais um ato de interesse em Hannah, o escritor dá a ela sua cópia autografada de um livro do Philip Roth. Depois disso, ele deita na cama e pede para Hannah deitar do lado dele, só porque ele anda se sentindo muito sozinho e queria ficar próximo de alguém. Ele insiste que não vai acontecer nada, que ela pode ficar de roupa. Hannah, abraçada no livro de Philip Roth recém recebido, respira fundo e deita do lado dele. 

Os dois estão deitados na cama, Hannah de barriga pra cima e o escritor virado de costas pra ela. Ele se vira vagarosamente de frente pra ela e se encosta mais no corpo de Hannah. Ela olha pra sua perna e vê que o escritor abriu a calça e deixou seu pênis pra fora, roçando na coxa dela. Hannah fica desconfortável, não sabe o que fazer e agarra o pênis dele por alguns segundos. 

Num salto rápido, ela pula da cama e se dá conta do que está acontecendo, se dá conta de que ela tocou no pênis dele sem nem desejar isso. Ela percebe que entrou no jogo dele assim como tantas outras. Hannah, que escreveu sobre o escritor ser um abusador, que foi lá pra dar uma lição feminista nele, essa mesma Hannah se viu deitada do lado de um cara que ela não tinha interesse, abraçada num presente recebido dele enquanto agarrava seu pênis cuidadosamente colocado sobre a sua coxa.

Depois disso, ela ainda assiste a filha dele tocando flauta, enquanto olha pra cara de pai orgulhoso do escritor, cara de homem que ainda se vê como vítima, de homem que finge não perceber o que fez, o que é. O episódio termina assim, com Hannah saindo do apartamento e caminhando em silêncio pela rua, numa calçada somente com mulheres viradas de costas para o espectador, enquanto a trilha sonora toca Rihanna. 



Esse episódio é tão pesado e delicado ao mesmo tempo, que eu senti vontade imediata de escrever sobre ele, mesmo sabendo que nunca vou conseguir transmitir os detalhes dolorosos dele. Mesmo quem não assiste a série, pode ver só esse episódio, porque ele é fechado, não movimenta a história geral da série. Ele é só um tapa na cara mesmo, um aviso sobre assédio silencioso e velado. 

Nunca vai se falar o suficiente sobre assédio. A gente é mais assediada do que nós próprias percebemos, e as ciladas machistas estão colocadas diante de nós todos os dias. A Hannah foi na casa desse escritor cheia de si, empoderada por seus conhecimentos feministas, cheia de certeza e controle do próprio corpo. Ela não foi fraca, não foi burra, não foi vadia. Ela foi vítima. E vítima de algo tão silencioso que ela não teria como contar pra alguém. Ninguém nunca entenderia o assédio que ela sofreu. Afinal, ela foi no apartamento dele porque quis, ele não colocou uma arma na cabeça dela, não estuprou ela, não forçou a mão dela em direção ao seu pênis.

Precisamos estar atentas aos detalhes. Precisamos ser brutais, barulhentas, mulheres que ocupam espaço, que quebram o que encontram pela frente. Não dá mais pra entrar em joguinho de esquerdomacho. A Hannah só caiu no papo daquele cara porque ela se reduziu ao que ele pensava dela, ela viu seu valor sendo definido por ele, ela esqueceu quem ela era e se tornou apenas aquilo que ele deixava ela ser. Não façam isso, mulheres. A gente é muito mais que isso.

Link do torrent pra quem quiser baixar: https://tpb.cr/torrent/17184266/Girls.S06E03.HDTV.x264-BATV[ettv]

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