domingo, 7 de outubro de 2018

quebrando o silêncio

Precisei de silêncio depois de tanto grito. Briguei com tanta gente, conheci tanta gente, virei minha vida do avesso. E precisei de silêncio. Mas o contexto que nos esmaga exige o fim dessa quietude.

Não podemos ficar quietas. Nunca pudemos, na verdade. Umas mais do que outras. Mas agora a coisa mais linda desse mundo seria se nenhuma de nós abaixasse mais a cabeça, ficasse em silêncio, obedecesse sem questionar.

Nesse momento cada pequena decisão nossa conta muito. 

Como tu coloca o teu corpo no mundo? Quais espaços tu ocupa? Quais roupas tu escolhe pra vestir de manhã antes de trabalhar? Como tu corta o cabelo? Como tu anda na rua?

Se tu conseguiu passar até esse momento da vida sem ninguém te dizer, vou te contar uma coisa: TUDO QUE TU FAZ É POLÍTICO! Sabe aquela dieta pra tentar incansavelmente entrar num padrão? É uma decisão política! Sabe a calça que tu compra, a saia, a blusa, o batom, ou a falta que tu sente de todas essas coisas? Política!

Mais do que nunca precisamos pensar sobre os nossos corpos. O teu corpo é só mais um? Mais um corpo cinza, morno, padrão, invisível, igual a tantos outros? Tu quer ser isso? Por quê? O que te impede de ser outra coisa, outra mulher? Como tu pode tentar ser outra mulher hoje, agora? Como tu pode, hoje, recontar a tua história, ser dona da tua história, te narrar de um jeito potente, diferente, colorido, diverso, sujo, enfrentador?

Como tu te relaciona com as pessoas na tua volta? Tu pensa sobre isso? Tu apenas "convive com as diferenças" ou tenta pensar com elas, tenta te entrecruzar com elas? Tu apenas tolera aquela amiga meio tóxica, ou tu rompe com padrões preestabelecidos? Tu já pensou sobre a profundidade de uma decisão dessas?

Tu almoça com a família todo domingo? Tu ouve desaforos daquele tio? Tu diz "mas é família, né, tem que entender"? Se é família, se é importante, o melhor é continuar deixando que eles digam o que quiserem sem nenhuma consequência? Se a família é realmente importante pra ti, tu não quer que a tua mãe te conheça de verdade, saiba quem tu é? Tu não quer saber quem ela é? Tu quer continuar essa relação que acaba sendo quase um fardo? Como tu quer te relacionar com essas pessoas que tu diz amar? É o suficiente falar banalidades? Será que tu não pode ser mais verdadeira com eles? Será que tu não pode ser mais verdadeira CONTIGO?

Penso que estamos precisamos quebrar coisas. Quebrar padrões. Quebrar o homem, branco heteronormativo que existe dentro de todos nós. TODAS NÓS. Porque assim fomos ensinados, porque assim o mundo nos diz para ser. Todos precisam ser o homem, branco, hétero. Portanto, todos precisam violentar essa massa cinza e fraca vivendo na gente, e se manifestando em cada ato cometido.

Eu fiz algumas pequenas coisas que transformaram a minha vida. Parei de fazer dietas, me pesar, e me cercar de pessoas que o único objetivo da vida era ser magra. Mudei totalmente o jeito que eu me visto, falo, me comporto, Procurei quem eu realmente respeitava e amava e me agenciei a essas pessoas. Cortei aqueles que, depois de tanto tempo, ainda me violentavam, me machucavam e não me ouviam. Como mulher heterossexual, senti que precisava mudar a minha relação com TODOS os homens, em especial minhas relações amorosas. Comecei a estudar cada vez mais. Digo todos os dias para as amigas que eu admiro de verdade o quanto elas são incríveis. Digo pra mim todos os dias o quanto eu sou absurdamente forte. Tudo isso é diário, não existe "chegar lá".

E talvez, justamente, porque não existe "chegar lá" seja muito mais fácil ceder aos discursos que prometem esse "lá". A magreza, a riqueza, o casamento, a maternidade, o emprego. Esse monte de "lá" onde a gente tenta chegar. Amiga, isso não existe. Tu nunca vai chegar lá. E isso é lindo. Isso que é liberdade e plenitude. Liberdade de se transformar, de virar outra, de quebrar tudo, de se reinventar a todo o momento.

O que eu te peço é o mesmo que estou me exigindo nesse momento. Que pequena ação tu pode fazer para quebrar algum padrão na tua vida? Como tu pode, hoje, ser diferente do que tu é? O mundo tá precisando desesperadamente de que tu seja diferente.



sexta-feira, 17 de novembro de 2017

minha vida é minha

No evento "Mulher do ano" de 2017 da Glamour, a atriz Tracee Ellis Ross fez um discurso muito lindo sobre ser mulher e dona da própria vida. Resolvi traduzir porque acho que todo mundo deveria ler essa preciosidade. Então aí vai:

É muito interessante ser uma mulher de 45 anos que não é casada nem tem filhos, especialmente quando você acabou de parir seu quinto filho na TV. Você começa a ouvir merdas como: "Ah, você só não encontrou o cara certo", "O que você vai fazer?", "Ah, coitadinha", "Por que alguém como você está solteira ainda?", "você já pensou em ter filhos?", "Por que você simplesmente não tem um filho sozinha?". Isso nunca termina e não ajuda.

Eu cresci planejando um casamento. Meu vestido teria um corsete com múltiplas camisolas vintage derramando-se sobre meus ombros, e eu mudaria a roupa para um terno branco trespassado e calças pantalonas, para a recepção. Eu sonhava sobre ser escolhida por um homem poderoso, sexy, bondoso, com lábios carnudos e que sabia dar um bom abraço, e eu teria um filho chamado Lauren.

Mas eu também sonhava em ganhar um Oscar e aparecer em capas de revistas e fazer a diferença no mundo, ajudar mulheres a acharem sua próprias vozes. E a partir desse sonho, eu construí uma vida incrível. Eu me tornei uma mulher da qual eu tenho orgulho.

E aí alguém me diz sobre a sua amiga que adotou uma criança aos 52 anos de idade e como "nunca é tarde para dar sentido a sua vida", e o meu valor é diminuído no momento em que sou lembrada que eu "falhei" em relação ao casamento e o que isso carrega. EU! Essa mulher ousada, livre e independente. Quer dizer, eu pratico exercícios físicos, eu me alimento bem, eu quase sempre vou trabalhar no horário certo, eu sou uma boa amiga, uma filha dedicada, trabalhadora, tenho um bom crédito, eu tiro o lixo antes que ele fique fedido, eu reciclo, e eu ganhei um Globo de Ouro! Eu estou arrasando! Então, por quê? Por que eu sou incomodada desse jeito? Como se tudo que eu fiz e tudo que eu sou não importasse.

Eu olho para trás e penso em todas as maneiras em que nos dizem que esses dois objetivos (ser escolhida por um homem e ter filhos) são o que te fazem ter valor. Quero dizer: canções de ninar, fábulas, livros, filmes, "Sixteen Candles", todas as músicas de amor, e até o "Black-ish" - todos reiterando essa história limitada de que "marido + filhos = mulher". E o patriarcado - o patriarcado não está feliz comigo no momento. Eu estou falhando na minha função. Deixa eu contar para vocês, Mike Pence está muito confuso comigo no momento.

Francamente, frequentemente eu fico um pouco confusa. Então, aqui está algo que eu fiz mais vezes do que eu gostaria de admitir: tentar arranjar a coragem para dizer para o meu ex (quem eu amo muito) que eu quero sair com outras pessoas, mesmo a gente não estando mais juntos - nós estamos separados! E durante o período em que eu fiz isso, eu fiz o que mulheres esclarecidas fazem e peguei o meu diário. Eu fiquei sentada lá escrevendo, talvez conversando com a minha criança interior, e escrevi: MINHA VIDA É MINHA. Minha vida é minha.

Essas palavras me pararam e, honestamente, trouxeram lágrimas para os meus olhos, muitas lágrimas. Parece tão óbvio, mas obviamente não é. Porque eu não estava vivendo a minha vida como se ela fosse minha. Claro, de certa forma eu estava, mas num nível mais profundo não. Então, se a minha vida é realmente minha... eu tenho que realmente vivê-la por mim. Eu tenho que me colocar em primeiro lugar e não pedir permissão para fazer isso.

Mas, quando eu me coloco em primeiro lugar, o que volta para mim através de pessoas cheias de boas intenções - a maioria homens, redes sociais, mulheres aleatórias na academia, Mike Pence, qualquer um -  eles me dizem de todas as formas que eu estou sendo egoísta, que estou pressionando demais, sendo agressiva, controladora, implacável, teimosa, uma vadia, uma "resmungona", ah, e o meu favorito, que eu piso nos outros, porque deus proíba que alguns sejam pisoteados no meu caminho.

Quando a gente se coloca em primeiro lugar fazendo coisas como dizendo não, falando alto, transando com quem a gente quer, comendo o que os nossos corpos intuitivamente nos dizem para comer, quando usamos sutiãs confortáveis e não os que levantam os seios, postamos uma foto sem filtro... Nós somos condenadas por pensarmos por nós mesmas e sermos nós mesmas, por nos apropriamos das nossas próprias experiências, corpos e vidas.

Esse tipo de coisa é visto como ameaçadora e assustadora e certamente não é o que o patriarcado tem em mente. Junte-se a mim por um momento e imagine: como seria se as mulheres possuíssem completamente seu próprio poder, tivessem agência sobre sua plenitude e sua sexualidade, não para criar um produto e vendê-lo, ou se sentir digna de amor, ou usar isso como ferramenta de proteção, mas como um modo de vida? Imagine isso... verdadeiramente possuir seu próprio poder, agência e sexualidade.

Especialmente nesse momento, com toda a sua instabilidade, com tudo que está acontecendo como a árvore "Pussy Grab" que é sacudida e "agarradores" estão caindo dela como frutas podres. E ao mesmo tempo, com o surgimento do empoderamento: Black Lives Matter. Black Girl Magic. The Women's march! Me too!

Eu estou tentando unir toda energia ao meu redor, entrar nela, e combinar isso com a ideia de que a minha vida é minha. A minha "eu que escolho, vida de 45 anos" é minha. Não é coincidência que essas duas forças estão se encontrando ao mesmo tempo. Então aqui estou determinando como é a minha vida quando ela é totalmente minha. É preciso bravura para fazer isso. Significa arriscas ser mal entendida, vista como sozinha e quebrada, como quem não tem alguém para se apoiar, pedir ajuda ou se esconder, tendo que ser meu próprio suporte e tendo que se esforçar para achar amor, família e conexão fora dos lugares tradicionais. Mas eu quero fazer isso. Eu quero ser a minha versão corajosa, a minha versão real, aquela que possui a própria vida.

Isso significa que eu vou ter que quebrar um acordo que eu não aceitei oficialmente assinar, um documento feito por um bando de homens brancos velhos numa sala, o mesmo grupo de brancos velhos que gosta de criar leis sobre a nossa saúde e escolhas reprodutivas sem que a gente esteja lá para decidir junto. Esse acordo diz: nós estamos aqui para estar a serviço dos outros, que o nosso destino é viver à sombra dos homens, que nós somos apenas objetos de desejo, e que nós estamos dispostas a viver tendo as nossas vozes sufocadas repetidas vezes pela misoginia da nossa cultura.

Bem, escutem aqui, mulheres: eu estou rasgando esse acordo. Estou dando tchau para ele e fazendo um novo, e os meus termos são esses: eu vou possuir as minhas experiências. Eu vou prestar atenção na realidade da minha vida e na audácia dos meus sonhos em vez de seguir as expectativas nas quais eu fui criada. Eu vou dar espaço para o que tem de bom e de ruim nisso, mesmo as partes assustadoras, e abraçar todas as partes e todas as perguntas. Eu sei que é assim que eu passo de Tracee à Tracee corajosa.

Aqui vai uma boa notícia: você também pode ir de ser apenas você, para a sua versão corajosa. E você definitivamente deveria tentar se você ainda não fez isso! Porque a sua versão corajosa é linda! Não linda como quando você arruma o cabelo e faz as sobrancelhas. Quando eu penso no que é lindo, eu penso numa árvore; eu penso num pássaro cantando. Eu penso em uma mulher de corpo inteiro; eu penso na minha mãe na sua plenitude de dizer "essa sou eu", com os braços levantados, o coração aberto, o cabelo enorme, sexual, poderosa e cheia de agência.

Estar a altura de sua própria ressonância, de seu próprio ser. Totalmente aflorada. É assim que se parecem a beleza e a coragem. Mas principalmente porque o meu eu corajoso me lembra que eu sou completo apenas sendo eu. Não em relação a outra pessoas ou outra coisa, apenas totalmente e completamente eu.

O seu seu corajoso te dá bravura de se apoiar na sua própria agência, sua própria escolha, seu próprio desejo, sua própria espera, seu próprio medo, seu próprio luto, seu próprio futuro. O seu eu corajoso é só um aspecto da sua alma que te ajuda a ficar totalmente inserida e integrada com o seu verdadeiro eu. Esse eu corajoso está em você agora, no seu diário, no canto da sua mente, na sua lista do Netflix, esperando o seu convite. Então a deixe sair, deixa que ela tenha toda a sua plenitude. Essa parte linda e poderosa de vocês está apenas esperando o seu convite.


Pra quem quiser ler o texto original, segue o link: https://www.glamour.com/story/tracee-ellis-ross-glamour-women-of-the-year-speech-2017?mbid=social_facebook_fanpage

Tradução feita por Ananda Hilgert


sábado, 4 de março de 2017

sobre girls, esquerdomachos e valorização de si

Tenho uma relação de amor e ódio com a série Girls. Quando comecei, eu me apaixonei pela Lena Dunham, fiquei chocada com o quanto ela mostra o corpo gordo e flácido e isso fez eu me sentir bem, sentir que eu podia fazer o que eu quisesse com o meu corpo também. Aprendi um monte de coisa com essa série e tive muita raiva da maioria dos personagens. Eu sei também que ela é uma série bastante branca e a Lena Dunham não é o exemplo de feminista a se seguir, mas, mesmo assim, acho que vale a pena assistir.



A sexta temporada começou recentemente e eu não estava nem um pouco empolgada, porque odiei a quinta. Mas hoje eu vi o terceiro episódio dessa nova temporada e fui obrigada a reconhecer que a Lena Dunham ainda tem muita coisa pra nos dizer. 

(A partir daqui vão ter milhões de spoilers do episódio. Esse não é o tipo de episódio que se pode estragar com spoiler, porque ele não é só sobre o que acontece. Então, tu que sabe da tua relação com essa história de ter pavor de spoiler)

A Hannah vai na casa de um escritor, e logo a gente descobre que ele chamou ela lá por causa de um texto que ela escreveu sobre ele num blog feminista. Algumas mulheres denunciaram esse tal escritor dizendo que ele estava se beneficiando da sua posição para transar com gurias na turnê do seu livro.

Esse tal esquerdomacho-escritor convidou a Hannah para contar o "seu lado" da história. Ele diz que não está conseguindo dormir, que está preocupado com o quanto essa história pode fazer mal a sua filha, que a vida dele está sendo arruinada por causa dos textos sobre ele. Ele quer convencer a Hannah que não ouve assédio, que ele é só um cara adulto convidando mulheres adultas para o seu quarto de hotel. A gente nunca ouviu isso de um cara antes, né?



No meio disso, ele atende o telefone e fala com a sua ex-mulher sobre a filha dos dois. Quando desliga o telefone, ele faz questão de dizer pra Hannah que a ex-mulher é uma desequilibrada, uma mulher problemática, mas que ele está sendo bem legalzão e tentando considerar ela uma boa mãe.

Esse episódio é tão cheio de mini detalhes que não tem como falar sobre tudo. O personagem do escritor usa todas as frases mais clássicas, se coloca em posição de vítima, de homem que sofre por não controlar seus impulsos e por não conseguir se relacionar com mulheres. Ele fica nervoso com o uso da palavra consentimento e diz que na sexualidade existem muitas "gray areas". Ahãn, claro!

Ele lê para Hannah o que ele escreveu sobre a mulher que fez uma das principais denúncias e é um texto tão nojento, tão machista, tão objetificador e redutor da mulher, mas ele lê como se não fosse nada, como se aquele texto provasse o quanto não teve nenhum assédio acontecendo.

A Hannah conta pra ele uma história de assédio que ela sofreu na infância pra tentar dar um exemplo pro machinho, pra ver se ele entendia o que era consentimento, o que significava ele chamar um guria que é fã dele pro seu quarto de hotel. Como todo bom esquerdomacho, ele entendeu essa história como algo particular, e se mostrou compadecido. 

O tempo todo em que eles conversavam, ele elogiou a Hannah, disse que só chamou ela (e não todas as outras que escreveram sobre ele) porque ela era inteligente e engraçada. Hannah é fã dele também. E não tem nada mais emocionante do que receber mil elogios do teu ídolo. Com tanto interesse nela, com tanto charme, rodeada de livros no apartamento absurdamente lindo do escritor, Hannah baixa sua guarda. Ela fala até o quanto gosta de Philip Roth, mesmo sabendo que não devia por ele ser muito machista. Ela até revela o quanto gostaria que alguém escrevesse sobre ela do jeito que Roth escreve sobre as mulheres, mesmo sabendo que isso só faria dela uma vadia objetificada. Hannah se despiu de todo o discurso feminista que estava defendendo muito ferozmente nos primeiros momentos do encontro com o escritor.

Como mais um ato de interesse em Hannah, o escritor dá a ela sua cópia autografada de um livro do Philip Roth. Depois disso, ele deita na cama e pede para Hannah deitar do lado dele, só porque ele anda se sentindo muito sozinho e queria ficar próximo de alguém. Ele insiste que não vai acontecer nada, que ela pode ficar de roupa. Hannah, abraçada no livro de Philip Roth recém recebido, respira fundo e deita do lado dele. 

Os dois estão deitados na cama, Hannah de barriga pra cima e o escritor virado de costas pra ela. Ele se vira vagarosamente de frente pra ela e se encosta mais no corpo de Hannah. Ela olha pra sua perna e vê que o escritor abriu a calça e deixou seu pênis pra fora, roçando na coxa dela. Hannah fica desconfortável, não sabe o que fazer e agarra o pênis dele por alguns segundos. 

Num salto rápido, ela pula da cama e se dá conta do que está acontecendo, se dá conta de que ela tocou no pênis dele sem nem desejar isso. Ela percebe que entrou no jogo dele assim como tantas outras. Hannah, que escreveu sobre o escritor ser um abusador, que foi lá pra dar uma lição feminista nele, essa mesma Hannah se viu deitada do lado de um cara que ela não tinha interesse, abraçada num presente recebido dele enquanto agarrava seu pênis cuidadosamente colocado sobre a sua coxa.

Depois disso, ela ainda assiste a filha dele tocando flauta, enquanto olha pra cara de pai orgulhoso do escritor, cara de homem que ainda se vê como vítima, de homem que finge não perceber o que fez, o que é. O episódio termina assim, com Hannah saindo do apartamento e caminhando em silêncio pela rua, numa calçada somente com mulheres viradas de costas para o espectador, enquanto a trilha sonora toca Rihanna. 



Esse episódio é tão pesado e delicado ao mesmo tempo, que eu senti vontade imediata de escrever sobre ele, mesmo sabendo que nunca vou conseguir transmitir os detalhes dolorosos dele. Mesmo quem não assiste a série, pode ver só esse episódio, porque ele é fechado, não movimenta a história geral da série. Ele é só um tapa na cara mesmo, um aviso sobre assédio silencioso e velado. 

Nunca vai se falar o suficiente sobre assédio. A gente é mais assediada do que nós próprias percebemos, e as ciladas machistas estão colocadas diante de nós todos os dias. A Hannah foi na casa desse escritor cheia de si, empoderada por seus conhecimentos feministas, cheia de certeza e controle do próprio corpo. Ela não foi fraca, não foi burra, não foi vadia. Ela foi vítima. E vítima de algo tão silencioso que ela não teria como contar pra alguém. Ninguém nunca entenderia o assédio que ela sofreu. Afinal, ela foi no apartamento dele porque quis, ele não colocou uma arma na cabeça dela, não estuprou ela, não forçou a mão dela em direção ao seu pênis.

Precisamos estar atentas aos detalhes. Precisamos ser brutais, barulhentas, mulheres que ocupam espaço, que quebram o que encontram pela frente. Não dá mais pra entrar em joguinho de esquerdomacho. A Hannah só caiu no papo daquele cara porque ela se reduziu ao que ele pensava dela, ela viu seu valor sendo definido por ele, ela esqueceu quem ela era e se tornou apenas aquilo que ele deixava ela ser. Não façam isso, mulheres. A gente é muito mais que isso.

Link do torrent pra quem quiser baixar: https://tpb.cr/torrent/17184266/Girls.S06E03.HDTV.x264-BATV[ettv]

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

sou mais king kong do que sou kate moss

Escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas as excluídas do grande mercado da boa moça. E começo assim para que tudo fique claro: não me desculpo de nada, não vim aqui para reclamar. Não trocaria de lugar com ninguém, porque ser Virginie Despentes me parece um assunto muito mais interessante do que qualquer outro. Me parece formidável que também existam mulheres que gostem de seduzir, que saibam seduzir, e outras que saibam casar; que existam mulheres que cheirem a sexo e outras à merenda dos filhos que saem do colégio. Formidável que existam algumas muito doces, outras realizadas em sua feminilidade; que elas sejam jovens, muito bonitas, ou coquetes e radiantes. Francamente, fico muito por todas aquelas a quem convêm as coisas como estão. E digo isso sem menor ironia. Eu, simplesmente, não sou uma delas. Com certeza não escreveria o que escrevo se fosse linda, linda o suficiente para mudar a atitude de todos os homens que cruzam o meu caminho. É do ponto de vista de uma proletária da feminilidade que falo, que falei ontem, e que recomeço hoje. (...) Fico louca de raiva quando, na condição de mulher que interessa pouco aos homens, as pessoas tentam me convencer, sem parar, de que eu não deveria nem mesmo existir. Nós sempre existimos. Mesmo que nunca se fale de nós nos romances escritos por homens, que eles só consigam imaginar mulheres com as quais gostariam de transar. Nós sempre existimos - mas nunca falamos. Mesmo hoje, quando muitas mulheres publicam romances, raramente encontramos personagens femininas de aspecto físico desagradável ou medíocre, incapazes de amar os homens ou de serem amadas por eles. Muito pelo contrário, as heroínas contemporâneas amam os homens, os encontram com facilidade, transam com eles em dois capítulos, gozam em quatro linhas e adoram sexo. (...) Prefiro aqueles que não conseguem o que querem pela boa e simples razão de que eu mesma não consigo. E porque, em geral, o humor e a inventividade estão do nosso lado. Quando não temos do que nos gabar, somos, na maioria das vezes, mais criativos. Como mulher, sou mais King Kong do que sou Kate Moss. Sou esse tipo de mulher com que não se casa, como quem não se faz filhos; falo desse meu lugar feminino sempre de maneira excessiva, muito agressiva, muito barulhenta, muito gorda, muito brutal, muito peluda, sempre muito viril, como me dizem. Mas são justamente essas minhas qualidades viris que fazem com que eu seja mais do que um mero caso de exclusão social no meio de tantos outros. Tudo que eu amo na minha vida, tudo que me salvou até aqui, devo à minha virilidade. Escrevo daqui como uma mulher inapta a atrair a atenção masculina, a satisfazer o desejo masculino e a me contentar com um lugar à sombra. É daqui que escrevo, como uma mulher não sedutora mas ambiciosa, atraída pelo dinheiro que ganho sozinha, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela cidade mais do que pelo campo, sempre excitada pelas experiências e incapaz de me satisfazer apenas com a descrição que me fazem delas. Eu não me importo de parecer dura com os homens que não me fazem sonhar. Não me parece nem um pouco óbvio que as meninas sedutoras se divirtam tanto assim. Sempre me senti feia, e me sinto confortável com o fato de que isso tenha salvado de uma vida de merda, aguentando caras simpáticos que nunca teriam me levado mais longe do que à porta de casa. Sou feliz comigo desse jeito, mais desejante que desejada. Escrevo então a partir deste lugar, das não vendidas, das complicadas, das que têm a cabeça raspada, das que não sabem se vestir, das que têm medo de cheirar mal, das que têm os dentes podres, das que não sabem como se comportar, das que não ganham presentes dos homens, das que transariam com qualquer pessoas que as quisesse, das putonas, das putinhas, das mulheres de buceta sempre seca, das que são barrigudas, das que queriam ser homens, das que acham que são homens, das que sonham em ser atrizes pornô, das que não dão a mínima para os caras mais que se interessam pelas suas amigas, das que têm bunda grande, das que têm pelos duros e bem pretos e que não se depilam, das mulheres brutais, barulhentas, daquelas que quebram tudo o que encontram pela frente, das que não gostam de cosméticos, das que usam batom excessivamente vermelho, das que são muito feias para se vestirem como gostosonas mas que morrem de vontade de fazê-lo, das que querem usar roupas masculinas e barba na rua, das que querem mostrar tudo, daquelas que são pudicas por serem complexadas, das que não sabem dizer não, das que são presas para que possam ser domesticadas, das que dão medo, das que provocam pena, das que não provocam inveja, das que têm a pele flácida, a cara cheia de rugas, das que sonham em fazer um lifting, uma lipoaspiração, uma plástica de nariz mas que não têm dinheiro para tanto, das que estão acabadas, das que não têm nada que as proteja a não ser elas mesmas, das que não sabem proteger, das que são indiferentes aos filhos, dessas que gostam de beber nos bares até caírem no chão, das que não sabem manter as aparências; mas também escrevo para os homens que não sentem vontade de serem protetores, para os que gostariam de sê-lo mas não sabem como, para os que não entram em disputas, os que choramingam à vontade, os que não são ambiciosos ou competitivos nem são bem dotados ou agressivos, para os que têm medo, os tímidos, os vulneráveis, os que preferem cuidar da casa a sair para trabalhar, os que são delicados, carecas, muito pobres para reclamar, para os que têm vontade de dar o cu, os que não querem que a gente conte com eles, aqueles que de noite, sozinhos, têm medo. Porque o ideal de mulher branca, sedutora mas não puta, bem casada mas não nula, que trabalha mas sem tanto sucesso para não esmagar seu homem, magra mas não neurótica com comida, que continua indefinidamente jovem sem se deixar desfigurar por cirurgias plásticas, uma mamãe realizada que não se deixa monopolizar pelas fraldas e pelos deveres de casa, boa dona de casa sem virar empregada doméstica, culta mas não tão culta quanto um homem; essa mulher branca e feliz, cuja imagem nos é esfregada o tempo todo na cara, essa mulher com a qual deveríamos nos esforçar para parecer - tirando o fato de que elas devem ficar de saco cheio com qualquer coisa -, devo dizer que jamais a conheci, em lugar algum. Acredito até que ela nem mesmo exista. Virginie Despentes - Teoria King Kong


segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Ele não era "louco", ele era machista.

Faz só dois dias que entramos em 2017 e hoje mesmo eu ouvi de um cara que a Lei Maria da Penha beneficia demais as mulheres - sim, ainda existe homem dizendo isso. Ele mesmo foi indiciado pela mulher porque ligou pra ela informando que ia 'invadir' a casa pra ver o filho (ele não teve nem a capacidade de dizer de outro jeito).
Em Caxias do Sul/RS, uma mulher de 37 anos foi estuprada por NOVE homens na virada do ano, por conta de dívidas do ex-marido, mas o jornal Pioneiro, olha aqui, deu a matéria como SUPOSTO ESTUPRO. Suposto! Até quando? Casamentos abusivos, até quando?
Um homem assassina a mulher, o filho e a família dela, escreve uma carta machista, misógina, feminicida e o que que acontece? A gente continua lendo a carta, que se multiplica nos comentários de outros milhares de homens que escrevem e se comportam exatamente como o assassino.

Não vou reproduzir aqui todos os comentários que estavam colados nesse próprio print, mas eles, infelizmente, estão por toda parte, em qualquer das reportagens

Não preciso nem listar todas as mortes e estupros de mulheres só em 2016, aquelas que ficaram bem famosas pelos níveis hediondos de crueldade e "loucura" dos homens assassinos. Empalamentos, estupros coletivos, facadas, degolamento. Cada um dos comentários acima relembra e revive a morte de todas essas mulheres que foram assassinadas por homens pelo fato de serem mulheres. Edmilson diz "não sei se ele está certo ou errado, também já tive vontade de matar..." André Luiz "Maria da Penha é falha! Homens tbm são vítimas..." é tão triste e chocante perceber que é isso o que grande parte dos homens pensa: "eu também sou vítima". Vítima do quê? 


Homem não é assassinado por grupos de mulheres estupradoras. Homem não é empalado, esfaqueado porque estava esperando um filho. Esses homens se sentem vítimas porque não podem mais, tão facilmente, assassinar uma mulher sem que ela lute pela vida; esses homens se sentem vítimas das feministas que lutam para que, como mulheres, possamos viver. Porque eles são os homens que sequer gostam de mulheres, como bem escreveu a Mari aqui.  

Todos esses homens que comentaram atrocidades a respeito dessa tragédia feminicida multiplicam a carta do assassino. Todos esses homens, todos os dias, multiplicam comportamentos machistas, abusivos, agressivos contra mulheres. São os mesmos comentários de vários caras que entraram nesse blog mesmo, pra destilar ódio e machismo. São os mesmos comentários dos homens da tua família, dos teus colegas de trabalho, de todos aqueles que cruelmente seguem repetindo e acreditando que uma mulher "pede" pra ser estuprada; que o problema do feminismo são "as feministas"; que o problema é "ver machismo em tudo"; que as mulheres, a Dilma, a Maria da Penha, eu, minha vó, tua mãe, tua filha são todas umas vadias e que o homem é a verdadeira vítima de tudo isso. A gente sabe o que significa um misógino dizer isso. Não é o mesmo que escreveu a Clara, maravilhosa, aqui.  São exatamente os mesmos caras que não assumem o filho quando uma mulher engravida. Que abandonam, fogem ou, pior, talvez, vivem junto com a mulher, no velho e acabado matrimônio tradicional, à base de violência, como bem disse a nossa musa maravilhosa, Monique Prada:


Os crimes que têm acontecido não são uma "loucura". Loucura é estarmos vivas e fortes, ainda, apesar de todas as expressões de ódio, aniquilamento, descrédito, dúvida em relação à mulher como o outro a que se quer extinguir. Vamos parar com isso de dizer que machismo não é tão grave assim e que feminicídio é "loucura". Que não tenhamos descaso com o que produz violência de gênero.


quinta-feira, 6 de outubro de 2016

o mais profundo é a pele

Recentemente, eu li um livro que se chama "O Rosto de um Outro", do Kobo Abe. Conta a história de um cara que sofreu um acidente no seu laboratório e ficou com um rosto sem forma. Ele decide fazer uma máscara que imita um rosto para cobrir-se. A partir do momento em que ele começa a usar essa máscara, a sua personalidade muda completamente. Ele percebe que não tem como ter a mesma personalidade que sempre teve com um rosto diferente. Mudar o cabelo, mudar o formato do nariz, mudar a barba, tudo isso significou mudar quem ele era no mundo.

- Mas não há nada de errado em atribuir maior valor ao conteúdo do que à aparência, há?

- Prezar um conteúdo que não tem o respectivo recipiente...? Não confio muito nisso... Creio com firmeza que a alma humana reside na pele, sabe?

- Claro, metaforicamente falando...

- Não tem nada a ver com metáfora... - disse K em tom calmo mas categórico. - A alma humana está na pele... Acredito nisso literalmente. 


Eu mudei muito a minha aparência nos últimos anos. Quem me conheceu há cinco anos, por exemplo, e nunca mais me viu, pode passar reto por mim na rua sem me reconhecer. Isso me incomoda muitas vezes. Mas aí eu me pergunto: se eu mudei tanto o que eu penso, o que eu gosto, o que eu quero, como não mudaria de aparência?

Um dos impactos mais importantes do feminismo na minha vida foi a minha relação com dietas. Eu fazia dieta desde os 12, 13 anos. O que acontece com uma pessoa que fazia dietas loucas há mais de 10 anos, passava muita fome e de repente para com tudo isso? Sim, essa pessoa engorda! E eu engordei muito! Essa foi uma das maiores mudanças na minha aparência. Eu passei de alguém que se matava pra usar uma calça 40, 42, pra alguém categorizada como "plus size". Essa decisão me persegue todos os dias. Eu preciso me lembrar todos os dias porque não faço mais dieta e como não é ruim eu ser gorda. Eu, hoje, não conseguiria ser feminista e magra. 

"mas eu faço dieta porque é melhor pra mim, eu me sinto melhor magra e isso não me faz menos feminista". Hmm... olha, isso é bem problemático. Se tu é feminista tu sabe o que significa uma mulher fazendo dieta pra ficar magra, né?
"mas eu gosto de fazer dieta". Bah, daí tu tem que pensar sobre esses teus gostos. O que tu gosta nisso realmente?

Outra mudança constante na minha vida é o meu cabelo. Eu sempre gostei de cortar e pintar o cabelo, mas nunca tinha me dado conta como eu continuava dentro de uma zona de conforto sobre isso. Até que, ano passado, eu resolvi platinar meu cabelo. Aí eu tive várias cores diferentes e, além disso, um cabelo bem seco, bem sem forma, bem arrepiado, quebrado, e todas essas coisas que as propagandas de shampoo nos dizem que a gente não pode ter.

O cabelo platinado me fez ter outra relação com maquiagem. O que me levou a ter vontade de usar outros tipos de roupas. Usei saia justa e barriga de fora. Isso pra mim foi uma revolução! Quando eu era magra e passava fome, vivia me escondendo. Hoje, feminista e gorda, coloco a barriga pra fora bem feliz e me achando linda. Barriga e pernas cheias de celulite de fora, cabelo colorido e bagunçado, batom roxo. Tudo isso pode parecer bobo, mas foi uma experiência que me redefiniu.

Cabelo platinado e pneus na barriga não são só aparência. (Tu acha, por acaso, que o vestidinho azul de rendinha da Marcela Temer é só aparência, que não significa nada?). Tu não tem uma essência escondida por trás das tuas roupas e cortes de cabelo. Eu fui essencialmente uma pessoa loira platinada com barriga gorda de fora. O jeito que tu arruma ou deixa de arrumar o teu cabelo muda a tua relação com o mundo. E se tu não percebeu isso, de repente é porque tu tem exatamente o mesmo cabelo que sempre teve e acha que isso é o "normal", que o importante é o que "tá por dentro". Miga, o clichê pequeno-príncipe-o-essencial-é-invisível-aos-olhos precisa ser superado!
"mas eu aliso o cabelo e deixo ele comprido porque eu fico melhor assim". Miga, o que significa ficar melhor? Melhor pra quem? Melhor por quê?
"mas eu não gosto de pintar o cabelo, acho isso muito adolescente e superficial". Então acho que tu tá precisando de um cabelo verde nessa cabeça conservadora.

Não satisfeita com o impacto do cabelo loiro, eu resolvi cortar o meu cabelo bem curto. Fui aos poucos, até que cortei bem curtinho, tipo 1 cm de cabelo na cabeça. Foi um choque. Eu me achei horrível por vários dias. Claro, a minha ideia sobre a minha própria beleza ainda tava ligada a ter cabelo comprido, ter franja longa, ter o pescoço gordinho tapado por cabelo. Cabelo curto me deixou exposta demais. Me senti nua andando na rua. Nenhuma roupa ficava boa, nenhuma maquiagem combinava. Ficou mais difícil disfarçar o meu peso, as minhas bochechas, me fazer passar por uma guria "normal". Aí eu pensei: por que mesmo eu to querendo disfarçar alguma coisa? Que soco na cara que eu mesma me dei! E só por causa de um corte de cabelo.


E pra que eu contei essa minha saga de mudancinhas? Porque mudar "por fora" é tudo! Mudar o cabelo é mudar o que tu pensa sobre a vida. Parar de fazer dieta muda a tua relação com as pessoas, muda o que as pessoas pensam de ti, muda a forma como elas te tratam, muda as interações. Ser mulher e cortar o cabelo bem curto te coloca em outro lugar no mundo. Dá uma olhada como ficou a vida de gurias que decidiram parar de se depilar, por exemplo! Tu acha que elas têm os mesmos amigos de sempre, as mesmas ideias? A relação dessas gurias com feminismo, com pensamento, veio junto com a relação com o corpo, e é isso que eu estou defendendo aqui.

Quando alguém me diz que mudou muito o que pensa, mas continua exatamente com a mesma aparência, eu não acredito nessa pessoa. Não existe mudar por dentro. Não existe por dentro. Sim, eu to dizendo aqui que é pra julgar o livro pela capa.

Se eu posso dar algum conselho nessa vida seria esse: muda essa cara que tu carrega há anos! Muda radicalmente teu cabelo, teu peso, tuas roupas. Te desafia a ser diferente de ti mesmo constantemente. Mudar assim significa se conhecer muito também. Tu precisa te conhecer e pensar muito sobre quem tu é pra mudar. E não existe também alcançar o lugar supremo da pessoinha desconstruída. Mudança é um processo constante. Tu não vai "chegar lá". E isso é assustador e empolgante.

A gente precisa explorar outras linhas de vida, outras possibilidades. As tuas relações com colegas de trabalho, família, eleições, feminismo, tudo isso passa pela tua aparência. Usar uma cor de batom diferente não é algo fútil, superficial, mas é algo que pode ser uma possibilidade diferente de vida pra ti. Parar de usar salto pra parecer mais alta pode mudar tudo que tu pensa sobre ti e sobre teus amigos. Ou então, trocar a rasteirinha velha de couro por um saltão pode ser justamente o que tu precisa pra sacudir as tuas certezas! Por que será que o empoderamento no feminismo negro passa por questões como usar o cabelo natural? É só aparência? É só futilidade? 

E quando eu digo pra mudar, é pra mudar mesmo! Mudar pra ti e pro mundo! Não adianta mudar para se encaixar mais ainda num padrão de normalidade de existência. Te coloca em risco, abre mão dos teus confortos, te destrói e reconstrói e destrói de novo. E não espera um fim nisso tudo. E para de dizer que o importante é o que tá por dentro. Mudar radicalmente o que tu é pra ti mesma é te colocar no mundo, é aparecer, é parar de operar com as mesmas velhas, cansadas, desgastadas, mofadas, pálidas linhas de "normalidade" de sempre. 

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

em defesa da dúvida: prostituição, apropriação cultural e mil coisas mais

Mês que vem vão fechar dois anos que eu e a Raquel temos esse blog. Publicamos 98 textos contando com esse. Nossa página no Facebook tem em torno de 8 mil curtidas (pode não parecer nada, mas pra gente é um número absurdo). Já demos várias palestras, cursos e oficinas sobre feminismo. Brigamos com muita gente, desfizemos amizades. Mas conhecemos muita gente legal, muita mulher maravilhosa. Nosso feminismo é jovem. Não tivemos ninguém que nos falasse de feminismo antes dessa recente onda de popularidade. Fazemos parte dessa massa de "feministas de Internet", que sabem muito bem que o mundo virtual extrapola barreiras, e que essa separação não faz mais sentido hoje em dia. 

Dei todo esse contexto pra dizer uma coisa: eu vivo em dúvida, vivo me sentindo culpada quando não sei me posicionar sobre algum assunto feminista, vivo achando que vai chegar aquele dia em que eu vou saber tudo de feminismo, vou ser aquela feminista maravilhosa, iluminada, lacradora, que ganha 3 mil likes pra cada frase que escreve no Face, que sabe tudo, tem respostas pra tudo, sabe qual o "lado certo" do feminismo e passa a vida "dando nos dedos" dos outros com grandes frases de efeito, só apontando os erros dessa massa de feminista-esquerdinha-confusa.

Coitada de mim, esse dia não vai chegar nunca. Mas tenho pensando que não quero que ele chegue mesmo. Estou querendo defender aqui algo que me parece fazer falta no mundo: a chance de não saber as coisas, de se deixar ficar em dúvida e saber que existe muito mais do que ser feminista radical ou liberal.



Comecei a pensar mais seriamente sobre isso nos últimos tempos, quando resolvi tentar me posicionar sobre a questão da prostituição, da "PL Gabriela Leite". Comecei a ler muito sobre o assunto, a seguir no Facebook feministas que são contra e a favor, adicionei prostitutas em todas as redes sociais para tentar me aproximar (um pouco, pelo menos) desse mundo do qual sou absurdamente distante.

Fazem semanas que leio quase todos os dias sobre o assunto. Cada vez eu penso uma coisa. Quando leio um post da Maria Gabriela Saldanha (que eu amo demais), ela me convence de que essa PL só beneficia cafetão, e que prostituição é abuso a serviço do patriarcado. Quando vejo a Clara Averbuck (que adoro também) super amiga da Monique Prada, e leio o que a Monique tem para dizer, penso que essa PL é necessária, e que não posso deixar de lado o que uma prostituta fala sobre a sua própria situação; penso que, de repente, preciso abandonar certos moralismo e aprender de verdade a lidar com a palavra puta.

Estou nessa situação há tempo e não consigo decidir. Queria chegar a uma conclusão para escrever um texto dexxxtruidor e dar a palavra final sobre esse assunto. Mas não vai dar. Quem veio aqui em busca de respostas, só vai ficar mais confuso junto comigo. Talvez eu não consiga chegar a uma conclusão porque ela não existe. Talvez a Maria Gabriela e a Monique Prada estejam igualmente certas, talvez a vida seja cheia de paradoxos como esse e é por isso que os filósofos (e o álcool) estão aí para nos ajudar desde sempre.



Estou aqui defendendo a possibilidade de dúvida, porque o que mais vejo é gente cheia de certeza. A feminista radical tem certeza absoluta de que prostituição é exploração sexual, é mulher como mercadoria. A outra feminista (de outra sei lá qual corrente...) está tão segura que diz até que prostituição é algo empoderador. As duas estão fazendo 30 posts por dia no Facebook, cada uma na sua bolha, com as suas certezas absolutas, só lacrando e ganhando like. Será que é assim tão certo, tão fácil se posicionar sobre um assunto complexo desses?

Outro assunto sobre o qual leio faz muito tempo para tentar escrever é apropriação cultural. Nossa, esse assunto é foda. Primeiro que sinto que eu sou proibida de falar sobre isso por ser branca. Ok, entendo isso, não precisa ninguém vir aqui correndo me explicar o que é "lugar de fala". Mas me parece estranho alguém ser proibido de falar sobre alguma coisa. Claro que não sou a favor daquele senso comum burro do discurso de ódio que diz "essa é a minha opinião e só estou usando a minha liberdade de expressão". Mas será que não existe algo entre discurso de ódio e lugar de fala? Será que não existe algo entre "brancas não podem usar turbantes, loiros não podem fazer dreads" e "cada um faz o que quiser com seu corpo, todas as culturas são misturadas, não é opressão é homenagem"?

Ultimamente tem outra "certeza" rolando por aí: peitos de fora na manifestação. Peito de fora é liberdade, é enfrentamento. Não! Peito de fora é só pra ter foto pra punheteiro, é ser puta exatamente como o que o patriarcado quer de nós! Não! Peito de fora é ter o poder de controlar o próprio corpo, é reivindicar poder sobre algo que é nosso! Não! Peito de fora é privilégio de gurias magras e novinhas que só querem biscoito de esquerdomacho amor livre!

Será que não tem nada além dessas "certezas"?

Eu acho que tem sim. E o que tem no meio dessas certezas são as dúvidas. Dúvidas que podem ser produtivas, que podem nos abrir para o diálogo, que podem nos tirar do pedestal-lacrador-ganhador de likes.



Tenho pouquíssimas certezas e ando gostando de conversar com quem está na mesma situação. Com quem toma uma decisão, toma uma posição, e depois percebe que fez merda, que não era bem isso, e volta a pensar, a se contestar, a se perguntar "por que eu penso como eu penso? Como posso pensar diferente do que eu penso?"

Todos os dias leio um post no Facebook de alguém que sabe o jeito certo de "militar". Normalmente alguém que "milita" desde os 12 anos, que praticamente nasceu dentro de um sindicato ou movimento feminista. Que bom pra ti, companheiro e companheira, por tu ser tão politizado há tantos anos. Mas tu te pergunta sobre as tuas certezas? Ou tu só fica no teu pedestal de militante experiente julgando "os errados"?

Não sei não, mas acho que alguém experiente é quem se pergunta algo novo todos os dias, que percebe que não sabe nada ainda e nunca vai saber. Quero mais gente cheia de dúvida na minha volta, e menos certezas totalitaristas.



Ps - antes que me acusem de "pessoa que não se posiciona", ficar em dúvida e se questionar é bem diferente de ficar em cima do muro, ok? Ficar em cima do muro, pra mim, é tão vazio quanto ter certezas absolutas. Não se trata de não se posicionar e ficar nos muros, mas de quebrar todos eles!