quarta-feira, 8 de abril de 2015

um teto todo meu

Esse texto está bordado de doçura, leveza, aprendizado e coragem. Esse texto foi escrito a muitas mãos, como só podia ser. E esse texto é endereçado a todas as mulheres que precisam de parcerias para dar o primeiro passo. Para todas aquelas que jamais se sentiram capazes de viver consigo. Para todas as que viveram a vida dos outros. Para aquelas que estão em relacionamentos abusivos e de controle, com parceirxs ou com familiares. Para todas as que se empoderam. Para todas as que se invisibilizaram. Para todas as que deram a volta e se descobriram. Para todas que se amam muito, acima de tudo. Para todas as mulheres que constroem seus tetos, de inúmeras formas. Para todas as mulheres. Porque todas elas nos ensinam a ser uma parte importante no todo.

Temos a sorte do encontro. Temos a sorte de conhecer essas quatro mulheres (e agora todxs xs leitorxs têm a sorte de suas palavras). Elas escreveram sobre a relação consigo mesmas, morando sozinhas e erguendo seus tetos.  Os relatos são lindos, garantia de amor e empoderamento até o fim da última palavra. Além disso, os relatos são um convite e um apoio. Mulher, te ama e te liberta, junto com a gente. 

Nati, Lu, Rafa e Paola, mulheres maravilhosas em um teto todo seu


UM TETO TODO DA NATI

"Decidi morar sozinha porque precisava de espaço. Espaço físico, mental, temporal, psicológico e emocional. Tive sorte porque a reação das pessoas, em geral, por eu ter um relacionamento estável de dois anos, era perguntar se eu ia morar sozinha ou com o companheiro. Eu perdi as contas das vezes que respondi isso com certo receio do olhar, do julgamento e do comentário machista que potencialmente viria a seguir. Mas foi incrível. De mães solteiras, mulheres casadas há décadas, mulheres divorciadas, marcadas pelo machismo de ex-companheiros escrotos, enfim, de uma variedade bem distinta de escolhas e destinos, de todas elas eu recebi um olhar incentivador, quando não um "aproveita muito" ou "eu gostaria de ter podido curtir essa fase da vida". Bem, não sei se precisa ser encarada como uma fase de quem necessariamente quer um dia vir a casar. Mas dá uma dor no coração pensar que tantas mulheres do meu cotidiano gostariam de ter tido essa "etapa", essa chance, essa vivência, e não tiveram. Que sorte nós temos de ter mulheres com as quais olhar olho no olho e poder ver a cumplicidade, a compreensão e solidariedade de abrir o coração para uma escolha que não foi a delas, mas poderia ter sido, se elas tivessem quem as olhasse assim. Por isso que morar sozinha, pra mim, significa, paradoxalmente, saber que não estou só. Que posso querer estar só. Que posso estar só. Mas ao mesmo tempo estou com todas as gurias e mulheres que resolveram construir seu próprio espaço. 


Sofrendo, peleando, gastando, trabalhando muito, mas acima de tudo curtindo ser uma, e apenas uma, e uma que se basta, e que isso importa mais do que qualquer outra coisa. Cada pintura de móvel, cada prego na parede, cada noite aproveitando a minha companhia demonstram a certeza de que não importa o que digam sobre ser mulher: nós podemos criar o nosso dia a dia cheio de luta e amor - amor das nossas irmãs, dos nossos companheiros e companheiras, da nossa família, mas acima de tudo, o amor que é o único que não pode faltar, que é o nosso por nós mesmas. Não tenho dúvida de que esse espaço pro nosso próprio amor é um espaço que só existe graças ao feminismo e ao olhar que muitas de nós receberam, dizendo: vai, não fica com medo, te ama e te constrói. Por isso resolvi gravar parte disso na parede com uma amiga que me ajudou (muito!) a me construir. Morar sozinha, com certeza, empodera as mina."

 


UM TETO TODO DA RAFAELA

"Morar sozinha era algo que eu desejava há muito tempo, mas, por falta de coragem e de dinheiro, fui adiando esse sonho. Eu decidi sair da casa dos meus pais no final do ano passado para dividir um apartamento com uma amiga, mas só me encontrei de fato e achei meu lugar no mundo quando tomei a decisão de ter um canto só meu, o que aconteceu uns três meses depois de ter encarado a primeira mudança, que hoje vejo como uma ponte importante nesse processo todo de sair da casa dos pais não para casar, mas para viver sozinha (ou com duas gatas). 


E foi quando me vi neste momento tão desejado de solidão que a vida e as minhas relações comigo, com as outras pessoas e com o mundo passaram a fazer muito mais sentido e se tornaram mais leves, mais completas, mais felizes. Foi quando eu percebi que dava conta de cozinhar, arrumar a minha casa (ou não arrumar, porque sempre tenho essa escolha), cuidar de duas gatas e pagar minhas contas sem depender de ninguém. Foi quando vi que eu me bastava, que essa existência ímpar é o que eu precisava para, enfim, me sentir inteira! Para mim, morar e estar só significa uma escolha, significa abrir mão do conforto da casa dos pais para voar mais alto, para ter mais liberdade, e é a minha solidão que me faz uma mulher mais livre. Livre para me encontrar e me perder em mim; livre para escolher cada detalhe, cada cor, cada perfume, casa som do meu cantinho; livre para encarar meus medos de frente, sem máscaras, desnuda; livre para andar nua pela casa, ouvindo minhas músicas preferidas ou o meu silêncio; livre para abrir este universo particular para quem eu quiser; livre para desbravar o meu mundo na minha melhor companhia: eu!"



UM TETO TODO DA PAOLA

"Poucas coisas versam tão bem sobre mim como a minha casa. Ou melhor, acho que nada nesse mundo versa tão bem sobre mim como a minha casa. Moro sozinha-sozinha desde o final de setembro de 2013, quando me separei de um relacionamento de 8 anos. Saí da casa da mãe para começar a morar junto com o meu ex em SP. Voltamos pra cá e seguimos morando juntos. Até a separação lá se foram 4 anos de dividir a casa, a cama, as contas. Morei ainda um tempo no apê que compramos juntos e desde fevereiro de 2014 moro aqui neste apê. O primeiro lugar na minha vida que realmente chamo de meu cantinho. Tudo o que eu tenho aqui foi super escolhido e é cheio de significados, mas meu cantinho preferido é a parede entre a cozinha e a sala, que tá pintada de preto e onde meus amigos deixam mil recadinho s fofos pra mim. Além dos recadinhos, escolhi esse lugar como favorito por estar entre a cozinha e a sala. Quem me conhece sabe que eu amo receber as pessoas aqui. Adoro cozinhar e beber com os amigos. 


Então esse lugar representa muito. O que foi bem fácil de aprender a morar sozinha foi a liberdade de trazer quem eu quiser pra cá, quando quiser, sem ter que me preocupar se vou atrapalhar alguém ou não. Simplesmente sair de uma aula na faculdade e perguntar pras colegas queridas: vamos almoçar lá em casa? Ou, depois de uma tarde na redenção, perguntar pro pessoal: vamos fazer uma pizza e tomar vinho lá em casa? Assim, sem ter planejado nada mesmo, duma hora pra outra. Adoro também que tenho vários amigos que me ligam do nada e perguntam se podem dar uma passadinha. Adoro isso. Adoro casa cheia. Hoje posso dizer que também adoro estar sozinha aqui, tomando chá, chimarrão, vinho, lendo, ouvindo música ou vendo alguma série na TV. HOJE. Logo que comecei a morar comigo mesma me sentia muito sozinha nesses momentos. Parecia que não era uma opção minha estar ali, sem ninguém mais além de mim. Eu amo cozinhar, e, às vezes, ligava pra um milhão de pessoas pra não ter que cozinhar só pra mim. Tem uma frase do Mia Couto que diz mais ou menos que cozinhar pra alguém é uma forma de amar o outro. Hoje eu entendo que cozinhar pra mim mesma algo que eu goste muito é uma forma de eu demonstrar meu amor por mim mesma, de me mimar, de me dar um momento saboroso. Por que não? Umas semanas atrás uma amiga me convidou pra sair numa sexta e eu disse que já tinha planos: ficar sozinha, comer risoto de damasco, ligar minhas luzinhas, tomar vinho e rever as duas primeiras temporadas de girls e sex and the city. Minha amiga riu. Eu ri também, meio que pra não entrar numa discussão. Tinha sido uma semana super cansativa e estressante e tudo que eu queria era ficar tranquila, cozinhar em silencio e esse era realmente um compromisso que eu tinha estabelecido comigo mesma."



UM TETO TODO DA LUANA

"Morar sozinha foi a maior experiência de auto conhecimento da minha vida. Depois de anos morando aqui e ali, não sentia que lugar nenhum era minha casa, mesmo após voltar de uma longa viagem, pensei: sabe aquela sensação de chegar e se atirar na tua cama, tomar banho no teu seu chuveiro? Não tinha isso em nenhum lugar.


Até realmente achar e me mudar para o apartamento demorou bastante e foram muitos papéis, assinaturas e desconfianças de que o mercado imobiliário é uma quadrilha de pilantras dignas de caricatura. Essa delonga foi, agora vejo, até boa, pois com bastante pesquisa e referencias (noites e noites dedicadas ao pinterest, aquele lindo), consegui ir moldando uma visão da casa que eu queria: muitas luzinhas, cheiro bom, flores e uma vitrola para passar o tempo. 


Estou há exatamente um ano aqui. E demorou quase um ano para a casa ficar como que gostaria, mas continuo achando coisas pra mudar toda semana. Saí de um emprego que me tomava tempo demais e não compensava para me dedicar mais à casa, sem nenhum pudor. Nos primeiros meses, não me sentia bem ali, não ficava em casa, não cuidava, passei meses sem internet e continuava com a sensação de que nada era meu ali, tudo isso combinado com uma falta de gostar de mim mesma gigantesca também. mas assim que a casa ganhou novos membros, os gêmeos, francisco e nicolas, percebi que aquele era o lugar mais meu do mundo. A cor deles combina com o sofá, com a cama, com as luzes e até com as flores que eles insistem em comer. A fofura felina me ganhou tanto que passei a cuidar muito mais, a entender que a casa que eu queria dependia de mim e do meu humor também. Com o tempo, veio a vitrola, a bicicleta, uma floreira linda e uma paz muito grande em estar ali, que só passando uma tarde chuvosa lendo, sentindo meu tempo que percebi que tinha meu lugar no mundo. Dos percalços, ainda tenho muito a aprender: fazer comida suficiente para uma pessoa é uma arte que ainda preciso dominar, pois a vontade de testar receitas é maior que a vontade de ficar olhando para o que sobrou durante uma semana. Saber seu tempo, suas vontades, prioridades, tudo envolve um se conhecer que só morando sozinha se aprender.


Tempos atrás, aconteceu uma coisa muito ruim, apesar de ter porteiro e de as pessoas sempre precisarem de autorização, deixaram uma pessoa desconhecida subir e esta ficou esmurrando a minha porta à noite, me deixando apavorada e fazendo até meus gatos fofuras rosnarem. Lembrei de todas as pessoas que por ventura poderiam estar ali, todas as que sabem que eu sou uma mulher que mora sozinha e juro que foram os quinze minutos mais apavorantes da minha vida. Tudo acabou certo, mas admito que passei a cuidar muito de quem vai me visitar e continuo com medo, sempre que o interfone toca e não estou esperando. Uma tranca a mais na porta, uma primeira insegurança. Também ainda confiro mil vezes se desliguei o gás, se por acaso tranquei a porta todas as vezes que ela pode ser trancada. Respondo muito sobre como consigo ser mulher e morar sozinha, se não tenho medo, mas o que mais escuto, de outras mulheres, é que elas não sabem como consigo, como não me sinto sozinha, que morar sozinha é bom “porque homem não ajuda em nada na casa”, combinado com um misto de pena : “mas é tão ruim ter que cozinhar só pra ti”. Agradar só a mim, não tem cara de dó nenhuma que acabe com esse prazer.


Ainda não sei martelar ou trocar lâmpada, mas já percebi que a cama arrumada faz muita diferença, que as plantinhas precisam de carinho e atenção e que meu medo de aranhas só existia quando não haviam dois predadores enlouquecidos atrás de uma. Falando nisso, também virei expert na salvação de lagartixas. Hoje tenho muita vontade da minha casa, de mim e dos gatos e é um grande orgulho ter feito um lugar no mundo tão fofo e aconchegante para mim, o francisco, o nicolas."



NUM TETO CABEM TANTAS

Quando estava no meio do mestrado em 2012 e não conseguia escrever, minha orientadora me emprestou "Um teto todo seu", da Virgínia Woolf. O que era para impulsionar a escrita de uma dissertação, ganhou a força de uma mudança radical. Terminei um relacionamento de três anos e logo engatei um outro - um relacionamento com minha própria potência de existir, sozinha, em um apartamento de 45m, todinho capaz de ser feito pra mim. Em janeiro desse ano pude conhecer a beleza do trabalho da artista Daniela Mattos, no MAC - Niterói, intitulado "Um teto todo meu", o que me remontou à experiência dos três anos passados, entre tempestades e alegrias nos mesmos 45m. O trabalho de Daniela lida com as relações entre corpo, escrita e imagem. Três conceitos sobre os quais me coloco a pensar todas as vezes que abro e fecho as portas de minha casa, me olho no espelho ou converso com mulheres que fazem parte da minha vida - no blog, no trabalho, na rua. 

Falta pouco para que meu relacionamento sério complete seus três jovens anos. E para comemorar um processo longo de tantas transformações da mulher que fui descobrindo ser e fabricando em mim a mulher que me torno a cada dia, tive a chance de compartilhar essa experiência, ouvir, ler, sonhar junto e conhecer  essas quatro mulheres maravilhosas - que, assim como eu, estão em diferentes momentos nesse teto todo nosso. Elas me ensinaram, nos últimos dias, que um teto todo seu é mais que uma casa. Mas é a gente na casa e a casa na gente. É mais que morar sozinha, porque é habitar em si mesma. E que cada pequena escolha remonta a tudo o que se pode ser como mulher. O mais importante agora, no meu teto, é poder construi-lo escolhendo minhas parcerias e tornando ele, também, um espaço de encontro e de poder. 

 


4 comentários:

  1. Quantas mais Nati, Lu, Rafa, Paola, Quel e Nandas existem por aí, mulheres maravilhosas que se assemelham em gostos e ideias, que querem um lugar para chamar de seu, onde podem curtir a própria existência, olhar para suas conquistas, seus sofás, seus gatos....luzinhas...e soltar aquele risinho de satisfação.....acreditem...vcs foram muito felizes nas suas narrativas......parabéns...visualizei cada história.

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  2. Estou EMOCIONADA! Que texto lindo e cheio de amor e luta. Parabéns, gurias. Parabéns!

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